quarta-feira, 20 de novembro de 2013

O dia em que os negros orixás chegaram à casa da Edith Gaertner

Por Sally Satler / Carla Fernanda da Silva


Foto: Sally Satler

Foi na segunda (18/11/2013), início da noite. Atraída pelo som de pandeiros eu vi, dentro da casa de Edith Gaertner, os negros orixás com suas vestes. As imagens de Congás, do pai-de-santo e ekédjis, de caboclos, pretos-velhos, oguns e iemanjá espalharam-se pelo Museu da Família Colonial.

No quintal, corpos negros jogavam capoeira, animados por músicas negras e berimbaus. Dava para sentir as entidades, negros e negras que já viveram em Blumenau, foram tantos e tantas, invisíveis aos olhos da história.

Ao meu lado, eu vi e ouvi a negra Bertilha[i], falando para Avandié[ii]:

“O nosso dia chegou, demorou demais, mas chegou. Teve que ser de mansinho e sutil. Muitos que aqui estão não conhecem nossa história, porque não nos deixaram contar”.

“Vamos gritar pra eles ouvirem, então!” – disparou Avandié, com o jornal “The Colored” em punho, bem vestido, com seu terno impecável e sapatos lustrados.

“Te assossega, homi. Senão eles se assustam! É bem devagar que eles saberão. Vamos assoprar no ouvido dessas pessoas que estamos felizes e aqui queremos ficar, pois também é o nosso lugar ”.

E ao som dos pandeiros e berimbaus as pessoas começaram, timidamente, a cantar:

Foge o nêgo sinhá
Oiá iá iá ía
Traz o nêgo sinhá
Paranauê, paranauê paraná
Paranauê, paranauê paraná

Abro e fecho os olhos, quase sem me acreditar ao ver negros corpos em sua dança mágica neste jardim, há tanto tempo colonizado. Hipnotizada pelo ritmo dos corpos e da música, sinto que ainda falta muito para conhecermos a história e as memórias daqueles negros que viveram/vivem e sofreram/sofrem aqui em Blumenau.

Com a palavra, os nossos historiadores!




[i] Bertilha da Rosa faleceu em 1986, atropelada por um ônibus em frente ao Corpo de Bombeiros de Blumenau. Pouco sabemos de sua história, apenas que em algum momento de sua vida enlouqueceu, e entre os internamentos na antiga Colônia Santana, perambulava pelas ruas de Blumenau. Nunca caminhava nas calçadas, sempre nas sarjetas das ruas, falando sozinha e com uma pedra na mão, como quem tem medo da sociedade onde vive e dela procura se defender. Ela também é personagem recorrente nas obras do escritor afroblumenauense José Endoença Martins.

[ii] Avandié foi um dos principais líderes negros da região, criou em Blumenau a UCHIC – União Catarinense dos Homens de Cor, em 1962. A UCHIC ficou ativa até os anos 1980, promovendo congressos, campanhas educacionais, palestras e concursos de beleza. Também publicou o jornal “The Colored”, em edições que contavam sobre o cotidiano dos negros no continente africano.  

* Esta crônica foi publicada no Portal Desacato, de Florianópolis e no Portal Blumenews, de Blumenau.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Vamos ouvir nossos muros!


Quando o portal ‘catraca livre’ escreveu há alguns meses que os muros falam e deveríamos ouvi-los, despertou-me a curiosidade. Que muros são estes, afinal?

Resolvi prestar atenção nos muros de Blumenau e a primeira coisa que percebi é que muitos dos muros que lembrei que tinha alguns escritos foram limpos, numa campanha de higienização e esquecimento das reivindicações de tantos blumenauenses. Enquanto isso, a poluição visual das marcas publicitárias nas cidades é normalizada, bem longe de ser entendida como ato de vandalismo.

Uma inscrição no muro nos interpela e às vezes exige uma resposta, podendo nos convocar também a uma autocrítica. Como já alertou a filósofa Márcia Tiburi, a revolta da sociedade contra a pichação/inscrição advém do ideal de limpeza estética, da brancura ou do liso dos muros, numa “sacralização que faz da pichação o demônio”, dificultando assim outras leituras. O grito impresso nos muros também pode ser “a irrupção do insuportável”, numa “tão assustada quanto autoritária sociedade civil analfabeta” (politicamente analfabeta).

Fazendo uma incursão por algumas ruas de Blumenau, fotografei os escritos e também busquei imagens já registradas por outras pessoas. O resultado está aí: os muros da cidade nos dizem muito. Vamos ouvi-los!


(Rua Max Hering)

Essa frase desalinhada, talvez por ter sido escrita às pressas, nos convoca a pensar na forma que estamos (sobre)vivendo: a rotina que nos é imposta pelo sistema e que aceitamos servilmente: produzir para consumir. Numa cidade que ainda acredita ‘que o trabalho dignifica o homem’, faz-nos refletir sobre as imposições do mundo do capital que dia após dia mortifica o ser humano na sua rotina trabalho-casa-trabalho e o silencia em doses diárias de TV e fluoxetina. E você, vive? Vive o lazer, a arte e cultura de sua cidade? Aproveita suas praças e ruas? Tem seus momentos de lazer com a família num calmo passeio pelos parques? Consegue ter o seu tempo para ir a uma apresentação musical ou teatral? Já levou seus filhos nos museus da cidade? Qual foi o último livro que leu e perdeu-se no mundo de fantasia e reflexões? Ou você apenas sobrevive para manter o Sistema?



(Rua Heinrich Hosang)

Já escrevi muito sobre como pedalar mudou minha vida. O prazer do vento no rosto, sentir na pele a memória da infância e no presente a liberdade. Sentir que naquele momento em que você está pedalando: o tempo, a vida, os pensamentos são apenas seus; é um instante de encontro consigo. A possibilidade de redescobrir a cidade, exatamente como quando saí de bicicleta para tirar as fotos que agora ilustram este texto. Encontrando os pequenos detalhes das ruas, a bicicleta nos devolve o direito à cidade, o prazer de contemplar uma pequena flor ou um detalhe despercebido da arquitetura, revivendo um cotidiano que a rotina de trabalho nos surrupiou. Nesta imagem há uma convocação à simplicidade da vida: andar de bicicleta e amar.


(Rua Heinrich Hosang)

Esta frase nos convoca a pensar como um grande evento (copa do mundo) está influenciando diretamente na vida de comunidades carentes, que pouco a pouco estão sendo removidas compulsoriamente de seus lares (como aconteceu com a aldeia maracanã e outras localidades) - fruto de especulação imobiliária disfarçada de melhorias para as cidades, tudo com respaldo estatal. Por que a vida, a dignidade humana, vale menos que o capital voraz de empreendimentos imobiliários ou um evento de copa do mundo? Vale lembrar que os inúmeros conflitos vivenciados no Rio de Janeiro é reflexo direto dos gastos excessivos com a copa, ao mesmo tempo em que a população continua andando em transportes públicos deficitários e vergonhosos, os professores continuam com salários baixíssimos e as escolas em situações precárias. E, ainda, temos o caso do servente de pedreiro Amarildo, desaparecido após uma sessão de tortura praticada por policiais da UPP. E os políticos? Bom, Sérgio Cabral continua morando muito bem no Leblon.





Talvez esse seja o mais difícil de analisarmos num primeiro olhar, dada a complexidade filosófica do mesmo. Aqui os autores fazem uma defesa da vida animal, ao mesmo tempo em que condenam as experiências de laboratório com animais não-humanos, e também defendem a alimentação vegetariana, levando em consideração todo o processo de violência que os animais são submetidos em fazendas, granjas e etc., para sustentar a alimentação humana com base na carne. O preconceito de espécie a que se referem é o fato de humanos considerarem os animais não-humanos inferiores e com base nisso, infligir-lhes dor e sofrimento.


(Rua Antônio da Veiga)

A frase e o desenho trazem uma crítica direta à sociedade de consumo, mostrando a cegueira do indivíduo pelo desejo de consumir objetos e marcas. A pessoa que sobrevive, como naquela primeira pichação, é também aquela que consome e trabalha para manter o seu consumo. Todo este ciclo conduz unicamente ao bem-estar de poucos, donos das grandes empresas e políticos corruptos. Para além do consumismo, o estêncil exorta para buscar nas relações e nos pequenos prazeres cotidianos o Valor do bem viver.


(Rua Antônio da Veiga - passarela)

Esta frase, grafada na passarela da FURB, traz uma convocação à necessidade de pensar além do senso comum, além do que nos é transmitido pela mídia de massa. Como no Brasil já se passaram décadas de informação sem reflexão, parece que perdemos a capacidade de pensar com a própria mente, andar com as próprias pernas e enxergar além do que nos é transmitido pela tela da TV.


Muro da FURB: novamente a reflexão sobre o quanto
é importante pensar além do capital.


(Muro da FURB)

Essa outra imagem mostra-nos uma crítica à mercantilização do ensino e do saber, que implica invariavelmente na impossibilidade de pensar além. O conhecimento tornou-se ‘moeda’ especialmente em países em desenvolvimento, como o Brasil, e o ensino superior e médio são cada vez mais ditados pelos padrões de qualidade exigidos pelo mercado de trabalho, cujo objetivo é a formação em nível técnico. O ensino a serviço do capital e das leis de mercado nos impossibilita o desenvolvimento da criticidade, o crescimento humano, pessoal, ético e ir além do senso comum.

(Rua Timbó)

Da Europa temos tido notícias constantes do retorno do nazismo, tristes conceitos que achávamos debatidos e para sempre excluídos como possibilidade política, mas que infelizmente sempre retornam com atitudes fascistas e comentários saudosistas. Aqui o muro relembra o terrível erro do passado, enquanto em páginas de papel e em mensagens virtuais, ou mesmo em cédulas de votos, tentam acordar o antigo ideário de exclusão.


(Rua Timbó)

Aqui nesta mensagem, faz-se uma apologia à perda de juízo: ousar mais, sair do que nos é ditado como ‘politicamente correto’, ‘padrão’, a fim de tornar a vida mais alegre e com algum sentido.


(Rua Timbó)

A crítica à mídia de massa e a monopolização dos meios de comunicação nunca foi tão evidente como na era de redes sociais. Esse desenho é dirigido especificamente à rede globo, que já distorceu muitos fatos na história - apoiou a ditadura e agora pediu desculpas (como estratégia de marketing) – e continua fazendo o mesmo, como nos manifestos/protestos de 2013.

Praça Dr. Blumenau: protestando por mudança.


(Rua das Palmeiras)

No muro que fica bem ao lado da Câmara de Vereadores, podemos ver a reivindicação pelo passe livre, bandeira sustentada pela necessidade de mudança no direcionamento dos investimentos públicos (gasta-se milhões/bilhões em pontes, viadutos e rodovias, mas não se investe em transporte coletivo gratuito e de qualidade, que a curto e médio prazo trariam resultados mais eficientes).



(Centro. foto: Marcos Boeira/divulgação)

Essa imagem eu trouxe para o texto por ser bastante significativa pra Blumenau, que desde a desativação das lombadas eletrônicas e redutores de velocidade vem apresentando índices alarmantes de acidentes e vítimas no trânsito. O carro atravessando um muro de Blumenau nos escancara o quanto as pessoas estão impacientes e violentas no trânsito caótico tomado por carros. Mesmo assim, não existem investimentos reais em mobilidade urbana alternativa e na construção de uma cidade para as pessoas.


Muro da FURB: uma opinião.

Muro da FURB. Resistir, sempre!

Av. Martin Luther (foto: Eduardo Abel)

Numa intervenção intitulada “Mais arte, por favor!”, artistas de Blumenau pintavam um muro abandonado, sujo e desgastado da Av. Martin Luther, quando foram interpelados pela polícia e um deles foi autuado. Isso porque os motoristas que ligaram para a PM, os denunciando como ‘vândalos’, foram treinados midiaticamente para isso: a denunciar tudo, também a arte, a escrita... a reflexão e a crítica.


Rua São Paulo, autor desconhecido).
Eu preciso comentar esta?

Para finalizar, façamos os seguintes questionamentos: Neste mundo, quem ganha e quem perde com a higienização e o silenciamento dos muros? A quem interessa qualificar todas as pichações como vandalismo e a poluição visual das marcas publicitárias como normal e legítima? 


* Esse artigo foi publicado no Portal Desacato, de Florianópolis e no Portal Blumenews, de Blumenau.