sábado, 21 de setembro de 2013

A Saga do Ipê

Foto: Reprodução

Numa das terças em que costumo pedalar com um grupo de ciclistas, resolvemos voltar pela ciclofaixa do calçadão da Beira Rio, em Blumenau. Já eram 23 horas e, conversando com o Boos, ele apontou para um buraco na calçada, com grade por cima, e me confidenciou a saga do ipê que vive ali dentro.

Ele contou que a árvore estava com um galho grande quebrado, ficando nessa situação por bastante tempo. Num dia qualquer, eis que o poder público tentou solucionar o caso: cortou toda a árvore, deixando somente parte do caule. O corte foi tão cruel, que acreditou que ela havia morrido, desencorajada que estava de continuar vivendo por essas bandas.

Passados uns meses, eis que ele avistou um novo broto e percebeu que a árvore não se fazia de rogada: suas folhas novas ao redor do caule mostravam que ela queria renascer. Quem sabe, provando sua força e exibindo o verde alegre e vivo de suas folhas, eles iriam se condoer e deixá-la viver!

Mas não... Na última vez que o Boos olhou para o buraco, percebeu que cortaram novamente o seu resto de vida. Porque não basta ver pessoas presas nos prédios e lares, com portas e janelas gradeadas. Também não basta aprisionar e gradear árvores que só querem nascer, florescer e dar abrigo aos pássaros na Beira Rio. É necessário matá-las, para economizar com o jardim.


O Ipê, na Av. Beira Rio (Blumenau)

* Essa crônica foi publicada no Portal Desacato, de Florianópolis e no Blumenews, de Blumenau.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Gentileza, em Blumenau


Apagaram tudo, 
fizeram um muro em cima. 
Só ficou no Frohsinn, 
tristeza e madeira seca!

Nós que passamos
Pelas ruas da cidade
Merecíamos
ver a arte
e as mensagens de alegria!

Por isso eu pergunto
A você blumenauense
Se é mais inteligente
A arte viva ou um prédio em ruínas!

(Sally Satler)



Imagem: Por Gentileza Blumenau, via Facebook

* Publicado no Portal Desacato, de Florianópolis.

domingo, 8 de setembro de 2013

Pablo Neruda em Isla Negra



Quando estive no Chile em 2012, fiquei encantada quando avistei a Cordilheira dos Andes circundando a cidade de Santiago. É difícil descrever a emoção que senti ao subir o Valle Nevado.

Mas o que despertou o interesse em conhecer um pouco da história do Chile, foi quando chegamos à casa de Pablo Neruda, aquela que o poeta viveu o que considerou os melhores anos de sua vida. Fica em Isla Negra, uma pequena vila de pescadores do litoral chileno, a duas horas de Santiago. O nome do lugar foi ele quem deu, por causa das rochas negras que margeiam o mar e por proporcionar um certo isolamento. Ali viveu com Matilde, a amada que assumiu após divorciar-se da primeira esposa.

O local exala a paixão e personalidade de Neruda. Das três casas do escritor, essa seria a que mais representa as suas idéias poéticas, e talvez por isso foi escolhida como inspiração para o filme “O carteiro e o Poeta”.


Foto: Reprodução

Ao adentrar na casa, somos transportados a vários mundos através de suas coleções e souvenirs trazidos de toda a parte, como quem deseja guardar consigo fragmentos de memórias felizes das viagens que fez nos períodos de exílio e quando foi cônsul no governo Salvador Allende. Entre barquinhos, conchas, areia, cachimbos, estátuas e tantos outros objetos, a arquitetura da casa chama muito a atenção: foi construída de maneira que todos os cômodos tivessem vista para o mar – a forma comprida e desalinhada da casa acompanha o sinuoso desenho da orla da praia.  A casa é um testemunho da cumplicidade de Neruda com o mar, a mesa na qual escreveu muitas de suas poesias e outros escritos veio do mar, tal qual um presente que sela um pacto entre os dois. Numa manhã, após uma noite de tempestade, Neruda avistou a madeira de embarcação flutuando perto dos rochedos. Matilde e ele correram para resgatá-la, para transformá-la em mesa.


Foto: Arquivo pessoal

Passando por lá, deu pra conhecer mais desse poeta, sua força, ternura e a imaginação que nos encantou e ainda encanta, de seus versos não só apaixonados, mas também engajados. A sua luta e o apoio ao presidente Salvador Allende, a sua poesia, serviram também para mostrar ao mundo o sofrimento do povo chileno com o golpe militar liderado por Pinochet, ocorrido em 11 de setembro de 1973. Pablo Neruda faleceu doze dias após o golpe, em Santiago, e a causa oficial foi uma septicemia causada pelo câncer na próstata. Porém, o Tribunal de Apelação de Santiago fez uma exumação do corpo em abril deste ano (2013), a fim de investigar se o poeta foi morto em decorrência do câncer ou se foi assassinado com uma injeção letal. As análises toxicológicas ainda não foram concluídas.

Logo após a sua morte, as casas dele em Valparaíso e Santiago foram saqueadas e destruídas pelo regime militar. Mesmo em meio aos escombros, Matilde fez o velório do poeta em Valparaíso, a fim de mostrar ao mundo o que estava acontecendo em seu país. Neruda foi sepultado num túmulo anônimo no cemitério central de Santiago e teve sua obra censurada pela ditadura. Apenas dezenove anos depois, com a democracia já restaurada, é que o poeta teve atendido o desejo de ser enterrado em Isla Negra. O túmulo fica nos jardins da antiga casa, diante do Pacífico, e tem a forma de uma proa de navio.


Foto: Arquivo pessoal
   
Era muito frio quando visitamos Isla Negra. Mesmo assim fiz questão de chegar até a frente da casa, para ver de perto o mar de Neruda, com as ondas quebrando sobre as rochas negras e os sinos da casa tocando. Foi assim que senti sua poesia em mim.


Se cada dia cai, dentro de cada noite,
há um poço
onde a claridade está presa.

há que sentar-se na beira
do poço da sombra
e pescar luz caída
com paciência.

(Últimos Poemas)


* Esse artigo foi publicado no Portal Desacato, de Florianópolis e no Portal Blumenews, de Blumenau.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

O estatuto é do nascituro ou da criminalização da mulher?


Apesar da Constituição dispor que o Brasil é um Estado laico e com liberdade de crença religiosa, vemos atônitos as igrejas cristãs, sobretudo a dita “bancada evangélica”, tentarem impor seus preconceitos, dogmas e crenças religiosas a todos os cidadãos, através de Projetos de Leis e PECs que a todo tempo agridem a laicidade do texto constitucional, num claro desrespeito às liberdades individuais e à pluralidade de crenças do povo brasileiro.

O “Estatuto do Nascituro” é um exemplo disso. Permeado por conflitos, a maioria das pessoas sequer fez uma leitura e análise crítica do Projeto de Lei nº 478/2007 e suas alterações posteriores. Ao lê-lo, assustou-me a quantidade de vícios, erros técnicos grosseiros e imprecisões, além de evidenciar a motivação religiosa do projeto, de autoria dos então deputados Luiz Bassuma (PV-BA) e Miguel Martini (PHS-MG).

É por isso que resolvi expor alguns dos seus artigos e aspectos que considero mais relevantes e problemáticos, especialmente aqueles que afetam diretamente a vida das mulheres.


A ausência de prioridade à vida da mulher e a proibição irrestrita de abortar

Na maior parte dos artigos do projeto, encontra-se delineada a proibição irrestrita de interromper a gravidez, pouco importando se a vida da mulher está ou não em risco, se a gravidez foi ou não resultante de um estupro, se a gravidez apresenta riscos à saúde da mulher, se o feto é ou não anencéfalo, entre outras situações delicadas.

Adotando a teoria – mais eclesiástica do que científica – de que a vida surge já a partir da concepção (art. 2º e 3º) e que o conceito de nascituro inclui também o embrião, ainda que concebido in vitro e não transferido para o útero da mulher (art. 2º, parágrafo 1º.), consta ainda no projeto:
- No art. 4º - assegura ao nascituro/embrião “com absoluta prioridade” o direito à vida (ou seja: a mulher não terá prioridade sobre sua vida);
- No art. 5º - dispõe que nenhum nascituro será objeto de qualquer atentado aos seus direitos (ou seja: está proibida a prática de aborto em qualquer situação, sem exceção, por mais delicada que seja a situação da mulher, inclusive do ponto de vista da sua saúde);
- No art. 9º - proíbe discriminar o nascituro deficiente físico ou mental, privando-o de qualquer direito (a não discriminação de portadores de necessidades especiais já está prevista em outras leis, mas ao incluir o nascituro neste projeto, tem-se o objetivo claro de proibir a realização de aborto também de anencéfalo - sem cérebro -, eliminando assim uma recente conquista nos tribunais);
- No art. 10 - determina a realização de tratamentos para minimizar deficiências ou patologias do nascituro (não dispondo sobre qualquer exceção, mesmo que isso implique em prejuízos à saúde e à vida da mulher);
- No art. 12 - está proibido o “‘dano ao nascituro em razão de ato cometido por qualquer de seus genitores” (ou seja: está implícita a proibição de aborto mesmo em caso de estupro).

Por esses dispositivos, fica clara a ausência de prioridade à vida da mulher, bem como, retira-se qualquer hipótese de interrupção de gravidez.


A possibilidade de impedir o aborto em razão de estupro - uma leitura dos artigos 12 e 13

O projeto dá condições de vedar a realização de aborto resultante de estupro, conforme explicitado na redação do art. 12: “É vedado ao Estado ou a particulares causar dano ao nascituro em razão de ato cometido por qualquer de seus genitores”. Diante da polêmica causada, os deputados resolveram dar uma “disfarçada” ao apresentar um substitutivo, conferindo nova redação a outro artigo do projeto (art. 13), mas que entra diretamente em conflito/contradição com o artigo anterior: “O nascituro concebido em decorrência de estupro terá assegurado os seguintes direitos, ressalvados o disposto no art. 128 do Código Penal Brasileiro (...)” (o art. 128 do Código Penal é aquele que prevê a possibilidade legal de aborto realizado por médicos em caso de estupro e de necessidade de salvar a vida da gestante em casos de gravidez de risco). Essa redação confusa do art. 13 – e que conflita diretamente com o art. 12, abre a possibilidade de proibir/dificultar o aborto também em caso de estupro, além de submeter a mulher a outras situações humilhantes, a seguir mencionadas.


A legitimação do estupro: a pensão do estuprador e a bolsa-estupro do Estado (art. 13, parágrafos 1º e 2º)

Não bastasse a possibilidade de submeter a mulher a gerar uma criança fruto de estupro, o projeto prevê que em caso de identificação do estuprador, este deverá pagar pensão. Isso está bem claro quando o parágrafo 1º do art. 13 dispõe que: “Identificado o genitor do nascituro ou da criança já nascida, será este responsável por pensão alimentícia nos termos da lei”. Apesar de muitos dizerem que o recebimento da pensão do estuprador depende da vontade da mãe, não é assim que está disposto. Ademais, o parágrafo 2º do art. 13 só garante o direito de opção da mãe em colocar a criança para adoção: “Na hipótese de a mãe vítima de estupro não dispor de meios econômicos suficientes para cuidar da vida, da saúde, do desenvolvimento e da educação da criança, o Estado arcará com os custos respectivos até que venha a ser identificado e responsabilizado por pensão o genitor OU venha a ser adotada a criança, se assim for da vontade da mãe.”

Conforme os pontos destacados acima, sob nenhum ângulo é possível defender esse estatuto, pois além da redação sofrível e dotada de vagueza e contradições, estabelece mecanismos inadmissíveis de controle sobre o corpo e a vida da mulher, colocando-a na condição análoga de um objeto-incubador. Esse projeto representa um processo de moralização descabível, na medida em que possibilitará aos juízes/tribunais fundamentarem suas decisões em valores morais particulares e religiosos, utilizando-se da redação confusa do estatuto.

Não há problemas em não concordar com abortos, eutanásia ou casamento civil igualitário. O problema está em querer impor a todos a convicção religiosa de uma parcela da população, tirando o direito de cada um decidir se quer ou não continuar uma gravidez, se quer ou não morrer por não suportar mais sua doença terminal, se quer ou não se casar com quem deseja.

É em nome da liberdade que devemos lutar contra a aprovação desse estatuto, que criminaliza a mulher e legitima a violência sexual e psicológica; que extirpa qualquer chance de avanço na luta pela liberação do aborto; tudo em nome de um deus impiedoso, num País que, apesar de se dizer laico na Constituição, vem marchando a passos largos para uma teocracia cristã e contra as liberdades humanas.


Fontes:

BRASIL. Projeto de lei nº 478/2007 (apensos os PLs 489/07, 1.763/07 e 3.748/08), apresentado em 19 de março de 2007. Dispõe sobre o Estatuto do Nascituro e dá outras providências. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=770928>. Acesso em: 7 ago. 2013.

ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SEÇÃO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Parecer da Comissão de Bioética e Biodireito acerca (da inconstitucionalidade) do Projeto de Lei do 478/2007, do seu substitutivo e dos seus apensos. Rio de Janeiro, 27 jan. 2011. Disponível em:
<http://pt.scribd.com/doc/141632471/Parecer-Estatuto-do-Nascituro-Comissao-de-Bioetica-e-Biodireito-da-OAB-RJ-2011>. Acesso em: 7 ago. 2013.


*Esse artigo foi publicado originalmente no Jornal Expressão Universitária, do SINSEPES/FURB.