Apesar da Constituição dispor que o Brasil é um Estado
laico e com liberdade de crença religiosa, vemos atônitos as igrejas cristãs,
sobretudo a dita “bancada evangélica”, tentarem impor seus preconceitos, dogmas
e crenças religiosas a todos os cidadãos, através de Projetos de Leis e PECs
que a todo tempo agridem a laicidade do texto constitucional, num claro desrespeito
às liberdades individuais e à pluralidade de crenças do povo brasileiro.
O “Estatuto do Nascituro” é um exemplo disso. Permeado
por conflitos, a maioria das pessoas sequer fez uma leitura e análise crítica
do Projeto de Lei nº 478/2007 e suas alterações posteriores. Ao lê-lo, assustou-me
a quantidade de vícios, erros técnicos grosseiros e imprecisões, além de evidenciar
a motivação religiosa do projeto, de autoria dos então deputados Luiz Bassuma (PV-BA) e Miguel Martini (PHS-MG).
É por isso que resolvi expor alguns dos seus artigos e
aspectos que considero mais relevantes e problemáticos, especialmente aqueles
que afetam diretamente a vida das mulheres.
A ausência de prioridade à vida da
mulher e a proibição irrestrita de abortar
Na
maior parte dos artigos do projeto, encontra-se delineada a proibição
irrestrita de interromper a gravidez, pouco importando se a vida da mulher está
ou não em risco, se a gravidez foi ou não resultante de um estupro, se a
gravidez apresenta riscos à saúde da mulher, se o feto é ou não anencéfalo, entre
outras situações delicadas.
Adotando
a teoria – mais eclesiástica do que científica – de que a vida surge já a
partir da concepção (art. 2º e 3º) e que o conceito de nascituro inclui também o
embrião, ainda que concebido in vitro
e não transferido para o útero da mulher (art. 2º, parágrafo 1º.), consta ainda
no projeto:
- No
art. 4º - assegura ao nascituro/embrião “com absoluta prioridade” o direito à
vida (ou seja: a mulher não terá prioridade sobre sua vida);
- No
art. 5º - dispõe que nenhum nascituro será objeto de qualquer atentado aos seus
direitos (ou seja: está proibida a prática de aborto em qualquer situação, sem
exceção, por mais delicada que seja a situação da mulher, inclusive do ponto de
vista da sua saúde);
- No
art. 9º - proíbe discriminar o nascituro deficiente físico ou mental,
privando-o de qualquer direito (a não discriminação de portadores de
necessidades especiais já está prevista em outras leis, mas ao incluir o
nascituro neste projeto, tem-se o objetivo claro de proibir a realização de
aborto também de anencéfalo - sem cérebro -, eliminando assim uma recente conquista
nos tribunais);
- No
art. 10 - determina a realização de tratamentos para minimizar deficiências ou
patologias do nascituro (não dispondo sobre qualquer exceção, mesmo que isso
implique em prejuízos à saúde e à vida da mulher);
- No
art. 12 - está proibido o “‘dano ao nascituro em razão de ato cometido por
qualquer de seus genitores” (ou seja: está implícita a proibição de aborto
mesmo em caso de estupro).
Por
esses dispositivos, fica clara a ausência de prioridade à vida da mulher, bem como,
retira-se qualquer hipótese de interrupção de gravidez.
A possibilidade de impedir o aborto em
razão de estupro - uma leitura dos artigos 12 e 13
O
projeto dá condições de vedar a realização de aborto resultante de estupro,
conforme explicitado na redação do art. 12: “É vedado ao Estado ou a
particulares causar dano ao nascituro em razão de ato cometido por qualquer de
seus genitores”. Diante da polêmica causada, os deputados resolveram dar uma “disfarçada”
ao apresentar um substitutivo, conferindo nova redação a outro artigo do
projeto (art. 13), mas que entra diretamente em conflito/contradição com o
artigo anterior: “O nascituro concebido em decorrência de estupro terá
assegurado os seguintes direitos, ressalvados o disposto no art. 128 do Código Penal
Brasileiro (...)” (o art. 128 do Código Penal é aquele que prevê a possibilidade
legal de aborto realizado por médicos em caso de estupro e de necessidade de
salvar a vida da gestante em casos de gravidez de risco). Essa redação confusa
do art. 13 – e que conflita diretamente com o art. 12, abre a possibilidade de
proibir/dificultar o aborto também em caso de estupro, além de submeter a
mulher a outras situações humilhantes, a seguir mencionadas.
A legitimação do estupro: a pensão do
estuprador e a bolsa-estupro do Estado (art. 13, parágrafos 1º e 2º)
Não
bastasse a possibilidade de submeter a mulher a gerar uma criança fruto de
estupro, o projeto prevê que em caso de identificação do estuprador, este
deverá pagar pensão. Isso está bem claro quando o parágrafo 1º do art. 13
dispõe que: “Identificado o genitor do nascituro ou da criança já nascida, será
este responsável por pensão alimentícia nos termos da lei”. Apesar de muitos
dizerem que o recebimento da pensão do estuprador depende da vontade da mãe,
não é assim que está disposto. Ademais, o parágrafo 2º do art. 13 só garante o
direito de opção da mãe em colocar a criança para adoção: “Na hipótese de a mãe
vítima de estupro não dispor de meios econômicos suficientes para cuidar da
vida, da saúde, do desenvolvimento e da educação da criança, o Estado arcará
com os custos respectivos até que venha a ser identificado e responsabilizado
por pensão o genitor OU venha a ser adotada a criança, se assim for da vontade
da mãe.”
Conforme
os pontos destacados acima, sob nenhum ângulo é possível defender esse estatuto,
pois além da redação sofrível e dotada de vagueza e contradições, estabelece mecanismos
inadmissíveis de controle sobre o corpo e a vida da mulher, colocando-a na
condição análoga de um objeto-incubador. Esse projeto representa um processo de
moralização descabível, na medida em que possibilitará aos juízes/tribunais
fundamentarem suas decisões em valores morais particulares e religiosos,
utilizando-se da redação confusa do estatuto.
Não
há problemas em não concordar com abortos, eutanásia ou casamento civil
igualitário. O problema está em querer impor a todos a convicção religiosa de
uma parcela da população, tirando o direito de cada um decidir se quer ou não
continuar uma gravidez, se quer ou não morrer por não suportar mais sua doença
terminal, se quer ou não se casar com quem deseja.
É
em nome da liberdade que devemos lutar contra a aprovação desse estatuto, que
criminaliza a mulher e legitima a violência sexual e psicológica; que extirpa qualquer
chance de avanço na luta pela liberação do aborto; tudo em nome de um deus
impiedoso, num País que, apesar de se dizer laico na Constituição, vem
marchando a passos largos para uma teocracia cristã e contra as liberdades
humanas.
Fontes:
BRASIL.
Projeto de lei nº 478/2007 (apensos os
PLs 489/07, 1.763/07 e 3.748/08), apresentado em 19 de março de 2007. Dispõe
sobre o Estatuto do Nascituro e dá outras providências. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=770928>.
Acesso em: 7 ago. 2013.
ORDEM
DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SEÇÃO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Parecer da Comissão de Bioética e
Biodireito acerca (da inconstitucionalidade) do Projeto de Lei do 478/2007, do
seu substitutivo e dos seus apensos. Rio de Janeiro, 27 jan. 2011.
Disponível em:
<http://pt.scribd.com/doc/141632471/Parecer-Estatuto-do-Nascituro-Comissao-de-Bioetica-e-Biodireito-da-OAB-RJ-2011>.
Acesso em: 7 ago. 2013.
*Esse artigo foi publicado originalmente no Jornal Expressão Universitária, do SINSEPES/FURB.