segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Procurando Kafka em Praga

Por Carla Fernanda da Silva
e Sally Satler

Antes mesmo de chegar à Praga, na República Tcheca, estávamos ansiosas para ir até os locais em que Kafka viveu e percorreu, tentar encontrar a cidade que inspirou e influenciou o escritor lido e relido ao longo dos anos. Na primeira noite em que caminhamos, nos deparamos com uma livraria que leva o seu nome e encontramos um pequeno livro sobre os lugares que ele viveu e frequentou. Escrito por um estudioso de sua vida e obra, esse foi um dos melhores achados desta viagem, junto com uma HQ d’A Metamorfose’, que apesar de estar escrito em tcheco (não em alemão, na língua no qual Kafka escreveu sua obra), não resistimos, pois as ilustrações faziam uma clara referência aos desenhos de Kafka e o idioma tcheco parecia nos aproximar um pouco mais do seu cotidiano pelas ruas de Praga. Nessa primeira noite, mal imaginávamos o quanto Kafka estaria sempre perto de nossas caminhadas pela labiríntica cidade, que por tantas vezes nos perdemos.

Desenhos de Kafka

No segundo dia, partimos para o distrito do Castelo de Praga, onde viveram os antigos monarcas e hoje é a sede do presidente tcheco.  Para além do belíssimo Castelo, da Catedral de S. Vito e da beleza modesta da pequena Igreja de São Jiri (S. Jorge), o que mais nos agradou foram as pequenas e intocadas casas de vila no Golden Lane, local onde viveram aqueles que construíram o distrito do Castelo, e que sucessivamente foram alugadas para diversas pessoas, entre elas Kafka, que residiu na nº 22, onde escreveu “Um Médico Rural” – hoje uma charmosa livraria - , a cartomante Matylda Prusová – torturada e assassinada por nazistas alemães – e o historiador amador e colecionador de filmes Josef Kazda; além de abrigar um minúsculo Pub para aqueles trabalhadores, com o curioso desenho de um demônio em suas paredes.

Golden Lane - uma das casas que Kafka morou

Golden Lane - casa da cartomante Matylda

Golden Lane - casa  do historiador amador
e colecionador  de filmes Josef Kazda

Golden Lane - pequeno pub dos trabalhadores

A nossa procura pelo escritor continuou com a ida ao Museu Kafka, que inicia com uma breve passagem sobre a sua vida familiar e perpassa pelas dificuldades de relacionamento entre ele e o pai, especialmente. Seus manuscritos e desenhos foram expostos sob algumas mesas de vidro e em fichários, como aqueles das nossas antigas bibliotecas. Mas o mais interessante ainda estava por vir: em direção a uma cave, descemos vários degraus onde tinha um espelho que dava uma sensação de profundidade, talvez uma forma de nos mostrar que estávamos para entrar no mundo imaginário de Kafka; estranho pensar que éramos nós refletidas no espelho, e no quanto sua obra reflete o mundo que vivemos atualmente. Dali por diante, são inúmeras as salas que tentam trazer o fantástico de Kafka para a realidade, e isso acontece quando os personagens e as obras ganham vida em imagens, objetos, tato e sons. Na penumbra, imensos arquivos de granito preto a refletir a nossa face, em cada gaveta os nomes dos personagens de Kafka repetem-se, existentes numa grande sala-corredor que vai dando voltas – em alusão à sua crítica ferrenha à burocracia – Telefones, nas esquinas da sala-corredor, tocam continuamente, ao atendê-los, ouvimos falas dos seus personagens, de modo a nos transportar para o seu mundo.


Museu Kafka - arquivos e telefone

Museu Kafka - arquivos que nos refletem

Da sufocante burocracia, passamos para uma projeção em uma sala de espelhos que multiplicam os devaneios kafkianos, para voltarmos à penumbra, dessa vez em tons vermelhos e ambientada por gritos sufocados. A máquina da obra “Na colônia penal” estava ali, com o corpo do personagem preparado para receber a inscrição do crime o qual era acusado. Da mesma obra, conseguimos espiar por um orifício o vídeo com a condenação sendo inscrita no corpo, a pele cortada de forma precisa, primeiramente em traços horizontais e depois verticais, para no fim formar as palavras já borradas pelo sangue que escorria. De fato, o museu conseguiu captar a realidade de algumas das principais obras do escritor.


Museu Kafka - a máquina da obra "Na colônia penal"

Museu Kafka - foto do vídeo com a inscrição do crime
 em referência à obra "Na colônia penal"

No último dia, resolvemos errar pela cidade, mesmo assim nos deparamos com Kafka em nosso caminho. Chegamos até à ponte com a belíssima vista que ele tinha quando escreveu “A Metamorfose”, pois hoje o prédio onde ficava não existe mais. E por último, chegamos ao Café Kafka, que fica na casa onde nasceu, apesar de só a entrada ser original dos tempos em que permaneceu ali.


Vista do escritor ao escrever "A Metamorfose"

Quem leu os livros de Kafka encontrará sua obra na cidade labiríntica – literalmente – de ruas estreitas e passagens insólitas; no Castelo e, para o mais atento ou medroso, quem sabe a encontre na ausência de baratas, que talvez também tenham desaparecido quando da morte de Gregór Samsa. Mas não encontrará Kafka, por mais que a cidade o homenageie. Kafka desapareceu de Praga, tal como os personagens mais importantes ao fim dos seus livros. Kafka é um escritor que não se sente, não se materializa, nem pelas suas fotografias. Porque Kafka é o fantástico. A sua obra é que é realista.


Manuscritos de Kafka


quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Rastros de Brecht: o poeta-movimento

Chegar na casa onde Brecht viveu os últimos anos de sua vida foi emocionante. Após 15 anos de exílio, em razão da ascensão de Hitler ao poder, Brecht finalmente conseguiu retornar à Berlim. Não era mais a cidade que deixou. Mas foi na Chaussestrasse, 125 que voltou a criar suas peças de teatro e escrever poesias, além de fundar, bem perto dali, a companhia de teatro ‘Berliner Ensemble’, junto com a esposa Helene Weigel, e que existe até os dias atuais.

Ao adentrar na casa, é perceptível a simplicidade do poeta. Na sala-escritório, os móveis eram bem simples, tal como nos demais cômodos. Foi ali que ele criou parte de sua obra, caminhando por entre as cinco mesas espalhadas pelos cantos, com cinzeiros à espera de seu charuto. Sim, o poeta era movimento, tal como sua vida de intelectual militante; e não foi difícil senti-lo naquele lugar, mesmo após tantos anos. Da janela ao canto da sala, ele observava o cemitério onde hoje está enterrado, próximo ao túmulo de Hegel. No outro canto, sua máquina de escrever, onde datilografava seus poemas e depois os percorria novamente corrigindo-os à caneta. Poemas hoje guardados em um armário de gavetas brancas, protegidos em plásticos transparentes, mas ao alcance da leitura daqueles que lhe visitam.


Brecht no famoso poema “Apague seus rastros!”, escreveu um alerta imperativo aos companheiros de militância política e intelectual que atuavam à margem da lei e também aos moradores das já grandes cidades que não se sentiam em casa, obrigados a viver na metrópole como se fossem exilados ou perseguidos. Mas, após sua morte, seus rastros foram amorosamente mantidos. Como na casa que Helene Weigel fez questão de deixar intocada, inclusive os últimos jornais lidos por Brecht, no criado-mudo ao lado da cama, com notícias suspensas no tempo e nas amareladas páginas. Nos livros das estantes espalhadas pelos diversos cômodos ou nos cinzeiros sobre as mesas, ainda a espera das cinzas de seu charuto.


Para além dos rastros físicos, o mais importante está nas suas peças de teatro e sua poesia contestadora, mordaz, que é continuamente interpretada e reinterpretada em todos os contextos e tempos da história. Brecht entendia que as lutas do ser humano não se resumiam a escolher um lado da moeda. O ser humano, internamente, é dotado de contradições e essas percorrem por toda a existência. Sobretudo, é preciso ter consciência disso. É preciso conhecimento, cultura e fome de saber.

Compartilhar os rastros de Brecht é possível graças à queda do tal império que deveria ter mil anos, orquestrado pelo ridículo ‘pintor de parede’, como o poeta aludia ao insensato líder nazista. Brecht nos dá um olhar – e ação – a contrapelo da história, como tanto discutiu com seu amigo Walter Benjamin, e nos faz pensar nos dias atuais, que teimam em querer voltar a ser sombrios, especialmente em nosso Brasil onde índios são mortos, barracos são derrubados pela ganância imobiliária, presos são decapitados, gente de pele morena e negra é proibida de circular livremente, a polícia, descontrolada, faz suas vítimas por vingança ou por puro ódio. A vitória de Brecht ainda nos traz um fio de esperança: de que ainda é possível o ser humano voltar a ser... humano.

Eu vivo em tempos sombrios.
Uma linguagem sem malícia é sinal de
estupidez, uma testa sem rugas é sinal de indiferença.
Aquele que ainda ri é porque ainda não
recebeu a terrível notícia.

Que tempos são esses, quando falar sobre flores é quase um crime.
Pois significa silenciar sobre tanta injustiça?
Aquele que cruza tranquilamente a rua
já está então inacessível aos amigos
que se encontram necessitados?

É verdade: eu ainda ganho o bastante para viver.
Mas acreditem: é por acaso. Nado do que eu faço
Dá-me o direito de comer quando eu tenho fome.
Por acaso estou sendo poupado.
(Se a minha sorte me deixa estou perdido!)

Dizem-me: come e bebe! Fica feliz por teres o que tens!
Mas como é que posso comer e beber,
se a comida que eu como, eu tiro de quem tem fome?
se o copo de água que eu bebo, faz falta a
quem tem sede?

Mas apesar disso, eu continuo comendo e bebendo.

(Bertolt Brecht)


Texto publicado no Portal Desacato, de Florianópolis e Blumenews, de Blumenau.