Por Carla Fernanda da Silva
e Sally Satler
e Sally Satler
Antes mesmo de chegar à Praga, na República Tcheca,
estávamos ansiosas para ir até os locais em que Kafka viveu e percorreu, tentar
encontrar a cidade que inspirou e influenciou o escritor lido e relido ao longo
dos anos. Na primeira noite em que caminhamos, nos deparamos com uma livraria
que leva o seu nome e encontramos um pequeno livro sobre os lugares que ele
viveu e frequentou. Escrito por um estudioso de sua vida e obra, esse foi um dos
melhores achados desta viagem, junto com uma HQ d’A Metamorfose’, que apesar de
estar escrito em tcheco (não em alemão, na língua no qual Kafka escreveu sua
obra), não resistimos, pois as ilustrações faziam uma clara referência aos
desenhos de Kafka e o idioma tcheco parecia nos aproximar um pouco mais do seu
cotidiano pelas ruas de Praga. Nessa primeira noite, mal imaginávamos o quanto
Kafka estaria sempre perto de nossas caminhadas pela labiríntica cidade, que por
tantas vezes nos perdemos.
Desenhos de Kafka |
No segundo dia, partimos para o distrito do Castelo de Praga,
onde viveram os antigos monarcas e hoje é a sede do presidente tcheco. Para além do belíssimo Castelo, da Catedral de
S. Vito e da beleza modesta da pequena Igreja de São Jiri (S. Jorge), o que
mais nos agradou foram as pequenas e intocadas casas de vila no Golden Lane, local
onde viveram aqueles que construíram o distrito do Castelo, e que
sucessivamente foram alugadas para diversas pessoas, entre elas Kafka, que
residiu na nº 22, onde escreveu “Um Médico Rural” – hoje uma charmosa livraria -
, a cartomante Matylda
filmes
Josef Kazda; além de abrigar um minúsculo Pub para aqueles trabalhadores, com o
curioso desenho de um demônio em suas paredes.Golden Lane - uma das casas que Kafka morou |
Golden Lane - casa da cartomante Matylda |
Golden Lane - casa do historiador amador e colecionador de filmes Josef Kazda |
Golden Lane - pequeno pub dos trabalhadores |
A nossa procura pelo escritor continuou com a ida ao Museu Kafka,
que inicia com uma breve passagem sobre a sua vida familiar e perpassa pelas
dificuldades de relacionamento entre ele e o pai, especialmente. Seus
manuscritos e desenhos foram expostos sob algumas mesas de vidro e em
fichários, como aqueles das nossas antigas bibliotecas. Mas o mais interessante
ainda estava por vir: em direção a uma cave, descemos vários degraus onde tinha
um espelho que dava uma sensação de profundidade, talvez uma forma de nos
mostrar que estávamos para entrar no mundo imaginário de Kafka; estranho pensar
que éramos nós refletidas no espelho, e no quanto sua obra reflete o mundo que
vivemos atualmente. Dali por diante, são inúmeras as salas que tentam trazer o
fantástico de Kafka para a realidade, e isso acontece quando os personagens e
as obras ganham vida em imagens, objetos, tato e sons. Na penumbra, imensos
arquivos de granito preto a refletir a nossa face, em cada gaveta os nomes dos
personagens de Kafka repetem-se, existentes numa grande sala-corredor que vai
dando voltas – em alusão à sua crítica ferrenha à burocracia – Telefones, nas
esquinas da sala-corredor, tocam continuamente, ao atendê-los, ouvimos falas
dos seus personagens, de modo a nos transportar para o seu mundo.
Museu Kafka - arquivos e telefone |
Museu Kafka - arquivos que nos refletem |
Da sufocante burocracia, passamos para uma projeção em uma
sala de espelhos que multiplicam os devaneios kafkianos, para voltarmos à
penumbra, dessa vez em tons vermelhos e ambientada por gritos sufocados. A
máquina da obra “Na colônia penal” estava ali, com o corpo do personagem
preparado para receber a inscrição do crime o qual era acusado. Da mesma obra,
conseguimos espiar por um orifício o vídeo com a condenação sendo inscrita no
corpo, a pele cortada de forma precisa, primeiramente em traços horizontais e
depois verticais, para no fim formar as palavras já borradas pelo sangue que
escorria. De fato, o museu conseguiu captar a realidade de algumas das
principais obras do escritor.
Museu Kafka - a máquina da obra "Na colônia penal" |
Museu Kafka - foto do vídeo com a inscrição do crime em referência à obra "Na colônia penal" |
No último dia, resolvemos errar pela cidade, mesmo assim nos
deparamos com Kafka em nosso caminho. Chegamos até à ponte com a belíssima vista
que ele tinha quando escreveu “A Metamorfose”, pois hoje o prédio onde ficava
não existe mais. E por último, chegamos ao Café Kafka, que fica na casa onde
nasceu, apesar de só a entrada ser original dos tempos em que permaneceu ali.
Vista do escritor ao escrever "A Metamorfose" |
Quem leu os livros de Kafka encontrará sua obra na cidade
labiríntica – literalmente – de ruas estreitas e passagens insólitas; no
Castelo e, para o mais atento ou medroso, quem sabe a encontre na ausência de
baratas, que talvez também tenham desaparecido quando da morte de Gregór Samsa.
Mas não encontrará Kafka, por mais que a cidade o homenageie. Kafka desapareceu
de Praga, tal como os personagens mais importantes ao fim dos seus livros. Kafka
é um escritor que não se sente, não se materializa, nem pelas suas fotografias.
Porque Kafka é o fantástico. A sua obra é que é realista.