terça-feira, 29 de julho de 2014

Que cheiros têm a sua memória?


A fotografia pode nos encantar e mesmo fazer nos perder pelo labirinto de recordações e saudades, mas não tem o mesmo efeito de um cheiro, uma fragrância acolhedora que, repentinamente, nos leva para outro tempo ou lugar enigmático de memória. Que cheiros têm a sua memória?

Ah, aquele cheiro de infância, terra molhada, misturada ao verde cheiro das árvores! Nesta ex-cidade jardim, pouco desse cheiro ainda resiste, escondido por sob o asfalto e o gás carbônico dos automóveis. Raramente chega aos nossos sentidos e olfatos, mas quando aparece, próximo a essas resistentes ilhas urbanas de grama e árvores, dificilmente deixamos de sorrir ou nos enternecer.


Reprodução

Alguém ainda se lembra do cheiro de café torrado? Quando sinto, volto à infância e às férias escolares no apartamento de uma tia, em Jaraguá do Sul, pois era próximo do único supermercado da cidade na época, o Breithaupt, que abrigava sacas de café e o torrava todas as manhãs.

Em Blumenau, impossível não lembrar o cheiro de enchente, mesmo quando o rio dorme. Cheiro úmido de lodo que nos assombra e só quem viu sua casa, fotografias e história desaparecer nessa massa lamacenta sabe, sente e entende. Tristes capítulos, movidos à inapetência e omissão que ainda persiste, tal como a indústria política da seca no nordeste.

O cheiro de protetor solar lembra praia, mesmo não estando lá. De madeira me faz lembrar uma viagem à Canela, no Rio Grande do Sul; e o chocolate, quente ou frio, lembra-me Gramado e também de Interlaken, na Suíça. Os cheiros de café expresso, flores e perfumes, misturados, agora me fazem lembrar Paris. Assim como o inconfundível cheiro dos metrôs e dos quadros suntuosos dos seus museus. Berlim, linda que só, tem cheiro forte de história por quase todos os lados, como o gigante mercado de pulgas de Mauerpark, com suas empoeiradas moedas, roupas, malas, louças, antigas fotografias, máscaras de oxigênio e muitos outros objetos que nos levam ao tempo da guerra fria e à antiga Alemanha Oriental.


Café de Flore, em Paris. (Foto: Sally Satler)

Mercado de pulgas em Mauerpark, Berlim (Foto: Carla F. Silva)

E o cheiro da morte, como é pra você? Pra mim, vem daquelas coroas de flores, que muitos elogiam e eu detesto: mostram quem pode pagar pelo cheiro e o choro da morte. Mas também me lembra uma essência de lavanda presente no quarto do meu pai, que tanto lutou, mas foi abatido pelo câncer.

Esses cheiros, rastros de memórias alegres ou tristes... Quando menos esperamos nos invadem, e na mesma velocidade vão embora! Mas não sem deixar saudades... ou algumas reflexões.

Um comentário:

  1. Meu, Sally Satler, teu artigo aguçou minha memória e me senti aspirando nesta hora da noite na esperança de sentir meus amores da infãncia e da adolescência... e todos os cheiros lá de casa... E me veio o cheiro do pão assado no forno à lenha, da rosca de polvilho assada na folha de bananeira... e da rapadura nas rodadas de estória da Itália contadas pelas minhas tias... E o cheiro do sabugueiro subindo no vapor da sauna improvisada que meu pai e minha mãe preparavam para prevenir o "resfriado". E veio o cheiro das fábricas da minha cidade Brusque... E veio o cheiro das minhas filhinhas... já neste tempo tão próximo. Busquei então o cheirinho que está tão perto, do meu amor... Vou pra cama, minha amiga. Obrigada por aguçar meus cheiros que estão em constante movimento. Maria Emília.

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