Chegamos
eu e Carla na casa de Elza Lobo, exatamente no horário combinado. Era um sábado
de outono, 10 horas da manhã, com um céu azul surpreendente, ainda mais para
São Paulo. A recepção foi com um cafezinho, servido numa antiga mesa de madeira,
no quintal com jardim de inverno da casa que vive desde os 7 anos de idade. Lá
ficamos, cercadas de plantas, pássaros e muitas lembranças dos países que
percorreu durante o exílio.
Foto: Sally Satler |
Elza é uma daquelas mulheres guerreiras, sobreviventes
do regime militar, presa política entre os anos de 1969-1971, mas que continua
lutando e resistindo, agora para a história não se apagar. Entre tantas
memórias, ela nos contou algumas de suas ações no DEOPS - Departamento de Ordem
Política e Social e também no presídio Tiradentes, mais precisamente na ‘Torre
das Donzelas’, onde as mulheres presas políticas ficavam.
Como
a maioria não tinha dinheiro pra pagar advogados, nem pra ajudar os familiares
que estavam lá fora, elas se organizaram. Nos dias de visita, entregavam listas
de materiais aos parentes para que elas pudessem ter os apetrechos pra fazer coletes,
blusas e cachecóis. No início foi bem difícil, pois os militares suspeitaram
que os números contidos nas linhas, que só identificavam as cores, poderiam ser
códigos para levar informações a quem estava fora, militando contra o regime.
Mas
as costuras foram rendendo frutos, formando uma rede de solidariedade também
fora do presídio. Uma mulher, sensibilizada pela causa, alugou uma sala da Rua
Augusta, a mais famosa de São Paulo na época, para que pudesse vender as roupas
vindas do presídio. Uma das presas chegou a fazer um véu de crochê para deixar
na loja, que foi comprado por uma noiva que casou na igreja da Candelária, no
Rio de Janeiro. Elza nos confidencia que até hoje a noiva não sabe que o véu
foi feito na Torre das Donzelas.
Também
conseguiram, após muita insistência, convencer a direção do presídio em
deixá-las cozinhar a própria comida, eis que a oferecida era impossível de
comer (era muito ruim e servida em um latão, daqueles que assamos carne, que
era uma maneira a mais de humilhar os presos políticos). Revezavam-se diariamente para cozinhar numa espiriteira os
alimentos trazidos pelos familiares, tudo adquirido com o dinheiro das roupas vendidas.
Elza
também lembrou de uma médica presidiária que estava grávida, sofrendo a tortura
do medo de ter seu filho na prisão. Para acolhê-la e acalmá-la, organizou uma
lista do que seria preciso para realizar o parto e também roupas, fraldas e
mantos para o bebê. Essa lista iria para os familiares, que aos poucos trariam
o necessário nos dias de visita. A médica conseguiu sair um mês antes do parto,
mas nunca se esqueceu do gesto que lhe trouxe alento, sempre lembrado por ela
quando as duas se reencontram ao acaso.
Crédito
da imagem: http://40em40.blogspot.com.br
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Bem
no centro de uma das celas, em cima de um caixote, olhamos para um cravo
vermelho, que repousa numa garrafa de vidro. Elza nos conta que num dos natais que
passou na prisão, pediu à sua mãe que lhe trouxesse alguns ramalhetes de flores.
Encerrado o horário de visitas e antes que voltasse à cela, ela passou por
todas as celas pra entregar cravos vermelhos aos presos políticos - mulheres e
homens detidos ali no DEOPS. Também lembra que quando um deles era libertado,
os demais cantavam em alta voz a música ‘Suíte do Pescador’, de Dorival Caymmi.
Essas ações de resistência surpreendiam até mesmo os guardas do presídio: “Ah, essas bandidas das ideias!”. Sim, lá dentro, mesmo depois de tantas torturas e vidas ceifadas, elas continuaram lutando e resistindo, acreditando que era possível ser humano em meio a tanto terror. Sim, isso só nos mostra como faltam ‘bandidos’ e ‘bandidas’ das ideias nos dias de hoje, pra tantas dores, injustiças, preconceitos e atrocidades que aí estão. E Elza é o exemplo vivo de que é possível e importante lutar e resistir. Sempre!
Elza Lobo, saindo do extinto
Dops.
Foto: Sally Satler
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Vou trabalhar, meu bem querer
Se
Deus quiser quando eu voltar do mar
Um
peixe bom eu vou trazer
Meus companheiros também vão voltar
E
a Deus do céu vamos agradecer
Adeus, adeus
Pescador não se esqueça de mim
Vou rezar pra ter bom tempo, meu bem
Pra não ter tempo ruim
Vou fazer sua caminha macia
Perfumada com alecrim
(Suíte do Pescador, de Dorival Caymmi)
* Esse artigo foi publicado no Portal Blumenews, de Blumenau.
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