É com
este título intrigante que o filósofo búlgaro Tzvetan Todorov nos provoca e
convoca à reflexão sobre as ameaças aos Estados democráticos. A democracia,
como sabemos, tem como um de seus pilares a liberdade. Não se reduz a uma forma
de governo, não se limita a exercer o dever e direito de votar e ser votado nas
eleições. Democracia é participar, se envolver, fazer e cobrar justiça social,
pois o ser humano só é verdadeiramente livre se tem acesso aos direitos
básicos. As instituições democráticas são frágeis, e como cidadãos devemos
estar vigilantes aos sinais e riscos de autoritarismo.
Diante disso, é que se pergunta: quem são
os atuais inimigos da democracia? Os estrangeiros? Os terroristas? Um olhar
mais apurado nos mostrará que o inimigo é bem mais íntimo... e o livro de
Todorov nos possibilita esse outro olhar.
Segundo
o autor, os inimigos já não são mais ameaças vindas do exterior, de outros
países e seus regimes autoritários. Essas ameaças no momento estão em recuo,
ainda que muitos politicólogos e o pontual
ataque de 11/09/2001 contra os EUA nos levaram a crer que um novo inimigo
externo estava à espreita. O autor defende – e eu corroboro – que as reações
espetaculares aos atos terroristas marcaram mais do que os efetivos prejuízos
que infligiram. Também questiona qual a proporção entre o ataque às torres
gêmeas e as guerras no Afeganistão e do Iraque – que provocaram centenas de
milhares de vítimas, abalando a reputação dos EUA na região – e por
consequência a sua segurança. Isso sem contar os danos causados ao próprio país
e aliados europeus: a aceitação legal da tortura, a discriminação das minorias
ou as restrições impostas às liberdades civis.
Já não
há mais um inimigo global. O ‘inimigo’ está entre nós, engendrado no nosso meio,
na forma de uma deturpação da concepção de liberdade individual – o que faz com
que ‘outras exigências, não menos
indispensáveis sejam recusadas, reprimidas e eliminadas’. Deve existir uma
relação de limitação mútua entre a exigência pelo bem e interesse comum com a
exigência de liberdade individual. Essa constatação do autor partiu de um
questionamento logo no início da obra: “Num
primeiro momento eu tinha acreditado que a liberdade era um dos valores
fundamentais da democracia; agora percebo que certo uso da liberdade pode
representar perigo para a democracia. Haveria aí um indício de que, hoje, as
ameaças que pesam sobre ela não vêm do exterior – da parte daqueles que se
apresentam como seus inimigos, mas sobretudo de dentro, de ideologias,
movimentos ou gestos que alegam defender os valores democráticos?”
Mas
vamos ter um cuidado ao analisar o que o autor fala sobre ‘liberdade
individual’, pois um julgamento apressado poderia modificar o sentido de suas
palavras. Todorov trabalha com a compreensão de liberdade individual na
contemporaneidade, alicerçada atualmente no extremo individualismo, em que a
reivindicação de liberdade individual exclui a liberdade do outro e se sobrepõe
às reivindicações coletivas, próprias da democracia. O individualismo desmedido
transforma os cidadãos em tiranos-fascistas, intolerantes aos direitos de
outros cidadãos. Portanto, quando Todorov nos fala dessa ‘liberdade
individual’, é do descomedimento contemporâneo que ele faz referência. O mesmo
pode-se afirmar das pessoas que invocam o direito à ‘liberdade de expressão’,
quando apenas pretendem ter o direito de fazer apologia à violência, ao racismo,
à xenofobia, enfim, querem ter o direito de causar qualquer tipo de dor ou
atingir alguém; ou então invocar a ‘liberdade de crença’ a fim de tentar impor
a sua crença e a sua verdade a todos, sem ética e respeito à crença do outro.
Os
perigos da ideia de liberdade absoluta, baseada no individualismo, surgem
quando um dos elementos da democracia (povo, liberdade e progresso) é isolado
ou absolutizado: “o primeiro adversário
da democracia é a simplificação que reduz o plural ao único, abrindo assim o
caminho para o descomedimento.” Assim,
“a relação que se estabelece entre as duas formas de autonomia – soberania do
povo e liberdade da pessoa – é a de uma limitação mútua: o indivíduo não pode
impor sua vontade à comunidade, e esta não deve interferir nos assuntos
privados de seus cidadãos”.
Hoje “a democracia está doente de seu
descomedimento: a liberdade torna-se tirania, o povo se transforma em massa
manipulável, o desejo de promover o progresso se converte em espírito de
cruzada”. Exemplos não faltam em nosso país/ao nosso redor: a ‘liberdade
como tirania’ está naqueles que militam contra os direitos humanos na comissão
de direitos humanos; a ‘massa manipulável’ está naqueles rebanhos conduzidos
por pastores fundamentalistas (e que pregam um conservadorismo não praticado
por eles mesmos – a fim de alcançar a massa, com o objetivo de ganhar poder e
dinheiro); e um exemplo de ‘progresso como espírito de cruzada’ está na bancada
ruralista e até em alguns de nossos políticos locais que estão fazendo pressão
para derrubar alguns dispositivos vetados do novo Código Ambiental. Esses ditos
‘inimigos’ têm uma aparência menos assustadora, pois usam os trajes da
democracia e por isso podem muitas vezes passar despercebidos. Mas nem por isso
são menos perigosos: “se não lhes for
oposta nenhuma resistência, um dia eles acabarão por esvaziar esse regime
político de sua substância. Conduzirão a um desapossamento dos seres e a uma
desumanização de suas vidas.”
O
‘inimigo’ da democracia também está em nós mesmos – e a idéia de que possamos
nos assemelhar a quem execramos chega a ser insuportável: “Transtorna-nos pensar que Hitler era um ser humano que compartilhava
conosco certos traços. Esse mal é apavorante, e portanto preferimos
considerá-lo uma anomalia monstruosa, exterior à nossa história e à nossa natureza.
(...) Ao refletir sobre a história intelectual do nazismo, George L. Mosse, um
dos mais perspicazes especialistas no assunto, observava que o racismo no qual
se baseava essa doutrina compartilhava traços com outras bem mais respeitáveis.
O racismo, escreve ele, “não constitui uma aberração do pensamento europeu ou
de momentos isolados de loucura, (...) está “associado a todas as virtudes que
os tempos modernos não cessaram de elogiar”. Descobrir o inimigo dentro de
nós é inquietante, pois se antes nos atínhamos somente aos ‘inimigos externos’
(totalitarismo nazista, p. ex.), agora precisamos nos identificar como ameaças
e enfrentá-las. As chances de
superá-las, segundo o autor, não estariam numa guinada radical, pois essas
mutações da democracia não são fruto de um complô ou intenção maligna, e aí
reside a dificuldade de estancá-las.
Combater
os inimigos íntimos é mais difícil do que os inimigos de outros tempos, pois
eles invocam o espírito democrático, dando uma aparência de legitimidade. Mas
de maneira nenhuma isso pode nos levar a uma resignação ou cinismo; ou à
convicção de que tudo está perdido. Mas se não compreendemos a sociedade em que
vivemos, estaremos nos arriscando e muito – por isso a importância de levar em
consideração os estudos trazidos pelas ciências humanas e sociais.
Diante
das falências das concepções de governo, não podemos mais aceitar simplesmente
sermos governados, neste eterno retorno de uma servidão voluntária. É preciso
tomar parte e agir como cidadãos de fato e não massa manipulável. Precisamos
debater política com seriedade e promover o efetivo exercício de um
autogoverno.
Considerando
os tempos difíceis na luta pelos direitos humanos, a dificuldade de estabelecer
a laicidade do estado e o risco de vermos direitos conquistados com muita luta
e suor serem extirpados, é que recomendo a leitura desse livro – terminando
esta reflexão/diálogo com uma última citação: “A história não obedece a leis imutáveis, a
Providência não decide quanto ao nosso destino. O futuro depende das vontades
humanas.”
*
Os Inimigos Íntimos da Democracia, de Tzvetan Todorov (Cia das Letras, 2012)
* Esse texto foi publicado originalmente
no Portal Blumenews, de Blumenau, onde a autora é colunista; e no Portal
Desacato.info, de Florianópolis.
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