domingo, 6 de outubro de 2013

Ruas livres, corpos livres

Faz alguns anos que Blumenau já não possui mais aquela aura de prazer e tranqüilidade quando caminhamos pelas ruas centrais e de bairros próximos. O barulho do trânsito, buzinas e sirenes, a poluição tomando conta, a invasão da publicidade, a impaciência dos motoristas, a violência, estão minando, pouco a pouco, a convivência das pessoas nas ruas e passeios públicos, que passaram a se enclausurar em shoppings e centros comerciais.

A ideia dos arquitetos contemporâneos de que a arquitetura poderia modificar a sociedade parece ter se tornado utopia, eis que suas proposições são constantemente ignoradas e rechaçadas pelo poder econômico (leia-se: mercado imobiliário) e político. Henri-Pierre Jeudy e Paola Jacques, no livro ‘Corpos e cenários urbanos’ ilustram bem a situação ao afirmarem que “As cidades, no contexto de um mercado globalizado, assim transformadas sobretudo devido ao turismo, tornaram-se imagens espetaculares, outdoors, imagens sem corpos, espaços desencarnados, simples cenários”.

Toda essa transformação acabou por distanciar as pessoas, a convivência nas ruas já não é algo comum. Não vemos mais crianças jogando bola, soltando pipa, brincando de esconde-esconde, ou pessoas sentadas em suas varandas observando e conversando, nem mesmo a vizinha fofoqueira na janela flagramos mais! As ruas, mais vazias de pessoas e cheias de máquinas e asfalto, viraram sinônimo de medo: o medo de ser atropelado e o medo de ser assaltado são rotinas também em Blumenau.

Mas o que podemos fazer? Daniela Brasil, no livro “Os espaços públicos nas políticas urbanas”, nos dá algum sinal: “Se pensarmos que as cidades são materiais e imateriais, que são feitas de situações, encontros e práticas, atuar e interferir em espaços vividos pode ser mais efetivo do que desenhar e planejar espaços físicos”. Por isso, ela nos propõe uma apologia ao micro-urbanismo e aos pequenos gestos cotidianos, não sendo necessário “esperar por reuniões intermináveis, decisões excludentes e financiamentos astronômicos, passíveis de desvios e negociações corruptíveis.” Pequenos gestos e ações abrem possibilidades e criam novos espaços.

Em Blumenau também é possível criar espaços de convivência sem depender exclusivamente do poder público. Uma ação, barata e simples, seria iniciar na rua Curt Hering (dos correios) uma feirinha aos domingos com sebos e brechós, propondo a troca de objetos e incentivando a abertura dos cafés já instalados ali. O jornalista Leo Laps me confidenciou e imaginou a possibilidade de encontros aos domingos para trocas de discos e livros, com músicos divulgando seus trabalhos. Quem sabe outras trupes também se encorajam e ocupam o espaço para partilhar sua arte! E em quantas outras ruas, nos demais bairros, isso é possível fazer? Vizinhos podem se reunir e repensar o espaço de convivência no seu bairro, sem precisar esperar pelo poder público.


Brique da Redenção - Porto Alegre

Brique da Redenção - Porto Alegre

Precisamos reocupar as ruas, torná-las novamente um espaço de prazer, convivência e lazer. Com o tempo e a demanda criada, talvez a Prefeitura finalmente consiga perceber a necessidade de fechar permanentemente uma rua como a Curt Hering, tornando-a um passeio público convidativo para as pessoas.

Afinal, não precisamos de corpos de bronze e estátuas de cimento frias, espalhadas pela cidade. Precisamos é de corpos humanos nas ruas, verdadeiramente vivos, e quem sabe por alguns instantes, livres!


Rua Curt Hering, em Blumenau
  

Feirinha de San Telmo - Buenos Aires


* Esse artigo foi publicado no Portal Desacato, de Florianópolis e no Portal Blumenews, de Blumenau.





6 comentários:

  1. Ótima ideia, trazer Blumenau de volta a vida e compartilhá-la com as pessoas! Belo texto!

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  2. Muito bom Sally!! Sempre que vejo um dia de outubro com sol e muitas flores, não posso deixar de sonhar com uma Blumenau mais humanizada. Os Blumenauenses poderiam aproveitar muito bem o espaço da rua Curt Hering.

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    1. Oi Neusa, o dia estava muito lindo mesmo, tanto que as fotos da Curt Hering eu tirei hoje, pra poder publicar esse artigo. Abração em ti!

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  3. Muito bom o texto, mas acredito que esta situação das pessoas deixando de ir às ruas, se "enclausurando nos centros comerciais" seja a tendência moderna nas grandes metrópoles. Talvez o medo da violência, o tráfego cada vez mais pesado e poluente nos distancie dos centros urbanos da cidade e áreas públicas, que, teoricamente, seria um espaço dedicado às pessoas... Eu, particularmente vejo muita gente reclamando que não há nada para se fazer em Blumenau, que não tem para onde ir num final de semana por exemplo, quando na realidade, os espaços públicos de convivência estão sempre abertos e disponíveis à comunidade, talvez seja um pouco questão cultural também, a nossa veia capitalista nos diz que temos que gastar, só saímos quando é para comprar alguma coisa, quando temos destino certo (shoppings, lojas, etc) e desta forma, nos privamos de pequenos prazeres como dar uma volta caminhando pela cidade, visitar um parque ou uma praça, andar de bike ou caminhar com a família sem destino traçado, apenas aproveitando o momento simples e desfrutando da companhia de quem realmente importa em nossas vidas...

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    1. De fato Andrey, essa “tendência moderna” é que exige reflexão. Por que temos essa “tendência” a entender somente o consumo como atividade de lazer? Isso é assim, porque o todo um sistema se estabeleceu dessa forma, porque o lucro é tido como mais importante (construção de shoppings, grandes empreendimentos imobiliários, prédios e mais prédios comerciais) do que todos os pequenos e simples prazeres (espaços públicos humanizados para as pessoas, para poder dar uma volta tranquila pela cidade, visitar um parque ou uma praça, andar de bike ou caminhar com a família sem destino, ou ter tempo para desfrutar da companhia de quem a gente ama). Enfim, o lucro é mais importante do que qualidade de vida e precisamos parar e refletir sobre isso. Não vou mudar o mundo, mas o meu mundo eu posso tentar mudar, capice? São atitudes que também chamo de pequenas revoluções pessoais e cotidianas. Eu discuti um pouco disso no artigo “Você tem fome de quê?” http://www.sallysatler.blogspot.com.br/2013/05/voce-tem-fome-de-que.html e também no artigo “As pequenas revoluções” - http://www.sallysatler.blogspot.com.br/2013/06/as-pequenas-revolucoes-ou-voce.html. Estás convidado a acessar. Abraços e obrigada pelo feedback, Andrey! Eu curto um monte quando tenho retorno dos artigos.

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