quinta-feira, 13 de março de 2014

Um desejo de cidade no Fórum Mundial da Bicicleta


Por Sally Satler, membro do conselho
deliberativo  da ABC Pró Ciclovias.
e-mail: sally.satler@gmail.com

‘Um desejo de cidade’ é o sentimento compartilhado por todos os ciclistas, não somos apenas um grupo a reivindicar ciclovias e respeito dos motoristas, somos pessoas lutando por uma cidade como espaço de experiências. Desde a invenção do automóvel e do fordismo, artistas e filósofos[1] denunciam que o almejado progresso da modernidade tem nos usurpado o prazer de experimentar o mundo. Condenados a viver entre gestos repetitivos, entre paredes de uma fábrica ou escritório, dentro de insípidos shoppings ou ao lento ir e vir entre o frio metal e o vidro de um carro, não conseguimos mais perceber que existe um mundo a ser vivido em plenitude. Desejamos experimentar a cidade, experimentar o campo, sentir o sol e a chuva, o calor e o frio sobre uma bike que, como veículo, para além de sustentável e de mobilidade inteligente, proporciona-nos liberdade.

E é por esta razão que foi concebido o Fórum Mundial da Bicicleta. A primeira edição, em 2012, foi pensada e realizada um ano após o atropelamento proposital de um coletivo de ciclistas durante uma bicicletada/massa crítica[2] em Porto Alegre. Entre os dias 13 e 16 de fevereiro de 2014 foi Curitiba quem ganhou na diversidade de ciclistas e no colorido das bicicletas ao sediar a terceira edição, que até então só tinha acontecido na capital gaúcha. Não tivemos nenhum representante da nossa Prefeitura, em que pese ter sido convidada em dois momentos pela ABC Pró Ciclovias, mas muitos ciclistas de Blumenau estiveram no III FMB, misturando-se entre as tribos de várias cidades do país e do mundo.

Foto: Magali Moser

O evento realmente surpreendeu: a programação era totalmente gratuita, eis que foi financiado colaborativamente, via Catarse[3]. O conceito desta edição, “A cidade em equilíbrio”, teve o propósito de repensar e discutir o planejamento das cidades, trazendo idéias voltadas diretamente ao ser humano e espaços de convivência, entre exposições, palestras, oficinas, pedaladas e lançamento de livros. De Blumenau, foi apresentada a proposta de documentário ‘Vida em Trânsito’, de autoria de Diego Dambrowski, que expõe o paradoxo da ‘carrocultura’ num país ‘engarrafado’, propondo a retomada da bicicleta na mobilidade urbana. Também elegemos o catarinense André Geraldo Soares para a presidência da União dos Ciclistas do Brasil (UCB), entidade máxima do cicloativismo no país.
  
A tônica da maioria das atividades do Fórum foi a troca de experiências entre cidades do Brasil e de outros países. Na palestra organizada pelo movimento ‘Voto Livre’, de Curitiba, foi exposta a plataforma digital para apresentar projeto de lei eletrônico de iniciativa popular de mobilidade urbana sustentável, que ficará disponível e livre para outras cidades. Na feira do evento, estavam disponibilizados gratuitamente materiais sobre cicloativismo e ideias de projetos para implantação de ciclovias e também de bicicletas compartilhadas. Na Bicicletaria Cultural[4] foi realizada a oficina ‘Cartografia Poética das Trajetórias’, em que os participantes foram instigados a desenhar o seu principal trajeto no trânsito, para depois apresentar micro-narrativas das sensações, chamando a atenção para a importância de tornar o trajeto um espaço de experiências e vivências, algo extirpado na vida moderna. Muitas outras atividades (painel de economia criativa, painel de saúde, filmes sobre bicicleta) aconteciam simultaneamente e a opção por uma delas era intuitiva.

Mas todo o evento estava alinhado a um discurso: a busca de uma cidade para as pessoas. E pra isso, a bicicleta não pode ser vista somente como meio de transporte ou de lazer. Ela é instrumento de transformação da mobilidade urbana, verdadeiramente sustentável. É disso que precisamos nos convencer!


Oficina “Cartografia Poética das Trajetórias”
Foto: Carlos Roberto Pereira




[1] Como Chaplin, em ‘Tempos Modernos’, e Fritz Lang, em ‘Metrópolis’.
[2] Massa crítica ou Bicicletada (termo usado no Brasil) é um evento que ocorre em mais de 300 cidades ao redor do mundo, geralmente na última sexta-feira do mês, inclusive em Blumenau. Ela acontece quando dezenas, centenas ou milhares de ciclistas se reúnem para reivindicar seu espaço nas ruas, lutar por um trânsito mais humano e por um mundo mais respirável.
[3] Site que viabiliza o financiamento coletivo de projetos, também conhecido como crowdfunding. Consiste na busca de capital para iniciativas de interesse coletivo, normalmente financiado por pessoas físicas. Saiba mais: www.catarse.me.
[4] Espaço permanente de apoio e serviços aos ciclistas, como: estacionamento e aluguel de bikes, oficina mecânica colaborativa e até sesta em redes após o almoço. Saiba mais: http://bicicletariacultural.wordpress.com/

Artigo publicado no Jornal Expressão Universitária, do SINSEPES/FURB.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Ruas Sustentáveis e Inteligentes


Por Sheila Hempkemeyer,
psicóloga

Tive o prazer e o privilégio de participar do III Fórum Mundial da Bicicleta, ocorrido entre os dias 13 e 17 deste mês em Curitiba. Dentre todas as discussões, aprendizados e ótimos encontros existenciais participei de um painel sobre Urbanismo, com palestrantes estrangeiros que expuseram a realidade em seu país, bem como das iniciativas mundiais sobre o tema. Lars Gemzoe (dinamarquês) palestrou sobre “Porque alguém iria pedalar na cidade?”. Foi consenso entre todos os especialistas que quanto mais ciclistas na rua maior a segurança para os mesmo, consequentemente, maior o incentivo a pedalar.

Gemzoe apresentou o projeto Rua Sustentável em Nova York, que como toda grande cidade tem seu trânsito caótico. Porém o governo local decidiu diminuir (isso mesmo DIMINUIR) o tamanho das duas principais ruas centrais da cidade (Broadway Boulevard e Madison Square) para os carros e, pintou duas pistas de cores diferentes: uma transformou em praça pública com mesas, bancos e vasos decorativos; outra em ciclovia. Ou seja, uma rua onde haviam quatro pistas para carros, restaram somente duas, sendo as outras compartilhadas com as pessoas. Tinta e orientação foram necessários para que as pessoas começassem a ter o hábito de sentar nas praças e tomar um café, ou somente conversar, coisa antes nunca vista em NY. Muitos começaram também a deixar de usar o carro e começaram a andar de bicicleta.

Um grande investimento? Creio que não. Pura e simplesmente vontade política de efetivar o que todos sabemos (ou deveríamos saber): que a cidade é feita para as pessoas e não para os carros. Com isso as pessoas começaram a pedalar na cidade, tornando possível num grande centro comercial mundial aliar transporte sustentável e qualidade de vida para seus habitantes.

E a nossa Blumenau não poderia fazer o mesmo? Ao invés de criar pistas para carros, porque não criar uma rua sustentável semelhante a de NY? Precisamos de ousadia e visão de futuro (não era esse o discurso político nas eleições?!) e é fato que a bicicleta vem cada vez mais querendo seu espaço. Pedalando (saliento meu otimismo) percebo o apoio de muitos motoristas, e também dos colegas elogiando a iniciativa, mesmo que a maioria de nós estejamos exprimidos nas ruas e ciclovias da cidade.

Nova York. Fonte: vaidebici.wordpress.com


Se é algo que veio para ficar e cresce a cada dia é preciso um olhar especial para isso. Governantes, estamos pedalando cada vez mais e queremos nosso espaço por direito. Se NY consegue, porque Blumenau não pode usar um pouco de tinta e ousadia para podermos pedalar na cidade que tanto nos é negada?


Nova York. Fonte: www.mobilize.org.br

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Extra! Extra! Os novos ônibus de Blumenau


Não é piada, não. Saiu no blog do Jaime e estão compartilhando nas redes sociais. Blumenau, um vale quente pra deus do céu e o inferno dos diabos, continua com mandatários que pouco ou nada se importam com o povo que anda de transporte coletivo: estão na iminência de aprovar os novos ônibus pra circular na cidade SEM ar condicionado! E um anônimo coloca indignado seu comentário: ‘tão de brincadeira, né? Quando é que vão botar na cabeça que estão transportando gente?’

Fonte: Blumenau Mil Grau - Facebook
E como rede social é rede, sempre cai mais peixe pra colorir a história: irmão de motorista conta no facebook que os ônibus, quando comprados, já vem com ar condicionado de fábrica, mas mandam tirar quando chegam à cidade.










Isso tudo só me fez lembrar do Brollo... aquele que foi flagrado em certas escutas telefônicas, em palavras impronunciáveis neste 'horário de livre acesso.'  Ou seja, aqui nada muda: nem a forma de governar, nem o povo, pacífico que só. Quem tem mais culpa?







domingo, 23 de fevereiro de 2014

Rua João Pessoa: mortes à vista!


Sally Satler, advogada e ciclista.

Não adianta. Ninguém, mas ninguém vai me convencer a aceitar de cabeça baixa a colocação da terceira pista para carros na Rua João Pessoa, em Blumenau. Se antes o trânsito estava em duas pistas largas, com motoristas trafegando a 30, 40 km/h (velocidade aceitável para o perímetro urbano), é certo que com três pistas e a velocidade aumentando, os atropelamentos, ou melhor, os assassinatos por atropelamento irão acontecer. Porque é impossível ficar tratando como ‘acidente’ as inúmeras mortes por imprudência, excesso de velocidade ou embriaguez ao volante.

Aos que acreditam na promessa de medidas traffic calm naquela via, como travessias elevadas para pedestres, eu pergunto: como podem ser tão ingênuos, se estamos esperando há 4 anos somente a recolocação da fiscalização eletrônica? Se estamos, tão servilmente, só contando nossos mortos na cidade? Queria eu que estivesse errada! Nem mal foi feita a nova pista  e aconteceram choques entre veículos. E já tem apressadinho buzinando e ultrapassando os que ousam andar numa velocidade inferior a 80 km/h, numa via como aquela! Esta nova pista só é aceitável se for para uso de ônibus e ciclistas, com campanhas para educação e respeito mútuos.

A promessa de que após o término das obras de prolongamento da rua Humberto de Campos a terceira pista da rua João Pessoa será desativada chega a ser tragicômica – ninguém, nem o governo sabe quando essa obra vai começar e terminar, pois são mais de 100 desapropriações que precisam ser feitas antes (e pasmem, só uma foi feita até agora).

O governo municipal não está só na contramão da mobilidade sustentável e segura: está nas mãos de alguns poucos ‘donos da cidade e das ruas’. Pesquisem pra saber por que até hoje a Rua Benjamin Constant não possui ciclovia, mesmo tendo projeto de execução há anos amarelando no papel.

Como ciclista, não me sinto mais segura em pedalar na rua João Pessoa. Como pedestre, também. Escrevo por não querer ser conivente com isso, nem com as mortes que virão. E por isso a nossa BICICLETADA[1] de fevereiro (dia 28) tem que acontecer, lá na rua João Pessoa!

Foto: Marcelo Martins

Se uma cidade caótica como Nova York pode, Blumenau também pode, não é utopia! Dêem uma olhada nesse vídeo de 3 minutos:





[1] Bicicletada (ou massa crítica) é um evento que ocorre em mais de 300 cidades ao redor do mundo, geralmente na última sexta-feira do mês - inclusive em Blumenau, com concentração na Praça da Prefeitura, às 18:30h. Ela acontece quando dezenas, centenas ou milhares de ciclistas se reúnem para reivindicar seu espaço nas ruas, lutar por um trânsito mais humano e por um mundo mais respirável. 

* Artigo publicado no Jornal de Santa Catarina e também nos Portais: Controversas, de Blumenau e Desacato, de Florianópolis.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Drones: O céu que nos ‘protege’


O frio de janeiro no inverno europeu não nos impediu de fazer uma das atividades que mais gostamos: caminhar aleatoriamente no sábado de manhã pela cidade, desta vez no centro de Munique. Muita gente estava circulando na Marienplatz, com turistas admirando a Rathaus, antigo prédio da Prefeitura de Munique, e os moradores da cidade entretidos com seus afazeres cotidianos, como as compras no comércio local e na lotada feirinha de frios e temperos ali perto. O imponente relógio apontava 11 horas, hora esperada por muitos: a ‘dança do Glockenspiel’ na torre de 85m, onde 32 bonequinhos encenam batalhas e danças contando a história de Munique.

Ao desviar o olhar para o céu, percebi que não havia somente nuvens e um tímido sol; drones estavam à espreita, a nos vigiar. Minha primeira indagação foi: ‘o que aqueles drones faziam ali?’ Éramos turistas, olhando bonecos de metal dançando ao som de sinos.  Pensei que pudesse ser uma filmagem do departamento de turismo, mas, atenta aos seus movimentos de sobe e desce, observei ‘seu’ interesse naqueles que levavam mochilas nas costas. Teria o drone infravermelho? Ou eram os traços fisionômicos de alguns que despertava o interesse? Quem sabe, um coração acelerado ou um corpo febril? Meses atrás, esse novo tipo de maquininha, controlada à distância por jovens militares estadunidenses, conseguiu identificar um grupo de afegãos numa festa de casamento. Presumindo se tratar de guerrilheiros da Al Qaeda, bastou um clique para lançar uma bomba e aniquilar dezenas, talvez centenas de vidas inocentes. Nessa guerra ‘preventiva’, poucos conseguem perceber que não há vencedores. Há sanguinários e covardes, estes sim terroristas, que sequer ‘perderam tempo’ em justificar um ato tão arbitrário e desumano. Tudo com a nossa complacência!


Drone ao lado da Rathaus -
Prefeitura de Munique/Alemanha

Olhando ao vivo os drones em Munique e não pela tela de uma TV, de tanto misturarem realidade e ficção, obnubilaram nossa crítica sobre os Senhores da Guerra e seus perversos brinquedos. Ao capturá-los pela lente da minha máquina fotográfica, constatei que conseguiram transformar, nós todos, em inimigos e ameaça. Não só de Munique, como naquele momento tão trivial. Mas de tudo e de todos; e também de nós mesmos.
   
E o que podemos fazer diante desse tipo de ‘sociedade malvada’, usando o termo empregado por Leonardo Boff, em que humanos não se tratam mais humanamente e a barbárie corre sem rumo em velocidade galopante? Eu não sei. Mas o primeiro passo é perceber que o nosso aval, apoio e passividade para esse tipo de vigilância e controle, não é o caminho. Não mesmo!


Drone sob o céu de Munique/Alemanha

Texto publicado no Portal Desacato, de Florianópolis e no Blumenews, de Blumenau.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Procurando Kafka em Praga

Por Carla Fernanda da Silva
e Sally Satler

Antes mesmo de chegar à Praga, na República Tcheca, estávamos ansiosas para ir até os locais em que Kafka viveu e percorreu, tentar encontrar a cidade que inspirou e influenciou o escritor lido e relido ao longo dos anos. Na primeira noite em que caminhamos, nos deparamos com uma livraria que leva o seu nome e encontramos um pequeno livro sobre os lugares que ele viveu e frequentou. Escrito por um estudioso de sua vida e obra, esse foi um dos melhores achados desta viagem, junto com uma HQ d’A Metamorfose’, que apesar de estar escrito em tcheco (não em alemão, na língua no qual Kafka escreveu sua obra), não resistimos, pois as ilustrações faziam uma clara referência aos desenhos de Kafka e o idioma tcheco parecia nos aproximar um pouco mais do seu cotidiano pelas ruas de Praga. Nessa primeira noite, mal imaginávamos o quanto Kafka estaria sempre perto de nossas caminhadas pela labiríntica cidade, que por tantas vezes nos perdemos.

Desenhos de Kafka

No segundo dia, partimos para o distrito do Castelo de Praga, onde viveram os antigos monarcas e hoje é a sede do presidente tcheco.  Para além do belíssimo Castelo, da Catedral de S. Vito e da beleza modesta da pequena Igreja de São Jiri (S. Jorge), o que mais nos agradou foram as pequenas e intocadas casas de vila no Golden Lane, local onde viveram aqueles que construíram o distrito do Castelo, e que sucessivamente foram alugadas para diversas pessoas, entre elas Kafka, que residiu na nº 22, onde escreveu “Um Médico Rural” – hoje uma charmosa livraria - , a cartomante Matylda Prusová – torturada e assassinada por nazistas alemães – e o historiador amador e colecionador de filmes Josef Kazda; além de abrigar um minúsculo Pub para aqueles trabalhadores, com o curioso desenho de um demônio em suas paredes.

Golden Lane - uma das casas que Kafka morou

Golden Lane - casa da cartomante Matylda

Golden Lane - casa  do historiador amador
e colecionador  de filmes Josef Kazda

Golden Lane - pequeno pub dos trabalhadores

A nossa procura pelo escritor continuou com a ida ao Museu Kafka, que inicia com uma breve passagem sobre a sua vida familiar e perpassa pelas dificuldades de relacionamento entre ele e o pai, especialmente. Seus manuscritos e desenhos foram expostos sob algumas mesas de vidro e em fichários, como aqueles das nossas antigas bibliotecas. Mas o mais interessante ainda estava por vir: em direção a uma cave, descemos vários degraus onde tinha um espelho que dava uma sensação de profundidade, talvez uma forma de nos mostrar que estávamos para entrar no mundo imaginário de Kafka; estranho pensar que éramos nós refletidas no espelho, e no quanto sua obra reflete o mundo que vivemos atualmente. Dali por diante, são inúmeras as salas que tentam trazer o fantástico de Kafka para a realidade, e isso acontece quando os personagens e as obras ganham vida em imagens, objetos, tato e sons. Na penumbra, imensos arquivos de granito preto a refletir a nossa face, em cada gaveta os nomes dos personagens de Kafka repetem-se, existentes numa grande sala-corredor que vai dando voltas – em alusão à sua crítica ferrenha à burocracia – Telefones, nas esquinas da sala-corredor, tocam continuamente, ao atendê-los, ouvimos falas dos seus personagens, de modo a nos transportar para o seu mundo.


Museu Kafka - arquivos e telefone

Museu Kafka - arquivos que nos refletem

Da sufocante burocracia, passamos para uma projeção em uma sala de espelhos que multiplicam os devaneios kafkianos, para voltarmos à penumbra, dessa vez em tons vermelhos e ambientada por gritos sufocados. A máquina da obra “Na colônia penal” estava ali, com o corpo do personagem preparado para receber a inscrição do crime o qual era acusado. Da mesma obra, conseguimos espiar por um orifício o vídeo com a condenação sendo inscrita no corpo, a pele cortada de forma precisa, primeiramente em traços horizontais e depois verticais, para no fim formar as palavras já borradas pelo sangue que escorria. De fato, o museu conseguiu captar a realidade de algumas das principais obras do escritor.


Museu Kafka - a máquina da obra "Na colônia penal"

Museu Kafka - foto do vídeo com a inscrição do crime
 em referência à obra "Na colônia penal"

No último dia, resolvemos errar pela cidade, mesmo assim nos deparamos com Kafka em nosso caminho. Chegamos até à ponte com a belíssima vista que ele tinha quando escreveu “A Metamorfose”, pois hoje o prédio onde ficava não existe mais. E por último, chegamos ao Café Kafka, que fica na casa onde nasceu, apesar de só a entrada ser original dos tempos em que permaneceu ali.


Vista do escritor ao escrever "A Metamorfose"

Quem leu os livros de Kafka encontrará sua obra na cidade labiríntica – literalmente – de ruas estreitas e passagens insólitas; no Castelo e, para o mais atento ou medroso, quem sabe a encontre na ausência de baratas, que talvez também tenham desaparecido quando da morte de Gregór Samsa. Mas não encontrará Kafka, por mais que a cidade o homenageie. Kafka desapareceu de Praga, tal como os personagens mais importantes ao fim dos seus livros. Kafka é um escritor que não se sente, não se materializa, nem pelas suas fotografias. Porque Kafka é o fantástico. A sua obra é que é realista.


Manuscritos de Kafka


quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Rastros de Brecht: o poeta-movimento

Chegar na casa onde Brecht viveu os últimos anos de sua vida foi emocionante. Após 15 anos de exílio, em razão da ascensão de Hitler ao poder, Brecht finalmente conseguiu retornar à Berlim. Não era mais a cidade que deixou. Mas foi na Chaussestrasse, 125 que voltou a criar suas peças de teatro e escrever poesias, além de fundar, bem perto dali, a companhia de teatro ‘Berliner Ensemble’, junto com a esposa Helene Weigel, e que existe até os dias atuais.

Ao adentrar na casa, é perceptível a simplicidade do poeta. Na sala-escritório, os móveis eram bem simples, tal como nos demais cômodos. Foi ali que ele criou parte de sua obra, caminhando por entre as cinco mesas espalhadas pelos cantos, com cinzeiros à espera de seu charuto. Sim, o poeta era movimento, tal como sua vida de intelectual militante; e não foi difícil senti-lo naquele lugar, mesmo após tantos anos. Da janela ao canto da sala, ele observava o cemitério onde hoje está enterrado, próximo ao túmulo de Hegel. No outro canto, sua máquina de escrever, onde datilografava seus poemas e depois os percorria novamente corrigindo-os à caneta. Poemas hoje guardados em um armário de gavetas brancas, protegidos em plásticos transparentes, mas ao alcance da leitura daqueles que lhe visitam.


Brecht no famoso poema “Apague seus rastros!”, escreveu um alerta imperativo aos companheiros de militância política e intelectual que atuavam à margem da lei e também aos moradores das já grandes cidades que não se sentiam em casa, obrigados a viver na metrópole como se fossem exilados ou perseguidos. Mas, após sua morte, seus rastros foram amorosamente mantidos. Como na casa que Helene Weigel fez questão de deixar intocada, inclusive os últimos jornais lidos por Brecht, no criado-mudo ao lado da cama, com notícias suspensas no tempo e nas amareladas páginas. Nos livros das estantes espalhadas pelos diversos cômodos ou nos cinzeiros sobre as mesas, ainda a espera das cinzas de seu charuto.


Para além dos rastros físicos, o mais importante está nas suas peças de teatro e sua poesia contestadora, mordaz, que é continuamente interpretada e reinterpretada em todos os contextos e tempos da história. Brecht entendia que as lutas do ser humano não se resumiam a escolher um lado da moeda. O ser humano, internamente, é dotado de contradições e essas percorrem por toda a existência. Sobretudo, é preciso ter consciência disso. É preciso conhecimento, cultura e fome de saber.

Compartilhar os rastros de Brecht é possível graças à queda do tal império que deveria ter mil anos, orquestrado pelo ridículo ‘pintor de parede’, como o poeta aludia ao insensato líder nazista. Brecht nos dá um olhar – e ação – a contrapelo da história, como tanto discutiu com seu amigo Walter Benjamin, e nos faz pensar nos dias atuais, que teimam em querer voltar a ser sombrios, especialmente em nosso Brasil onde índios são mortos, barracos são derrubados pela ganância imobiliária, presos são decapitados, gente de pele morena e negra é proibida de circular livremente, a polícia, descontrolada, faz suas vítimas por vingança ou por puro ódio. A vitória de Brecht ainda nos traz um fio de esperança: de que ainda é possível o ser humano voltar a ser... humano.

Eu vivo em tempos sombrios.
Uma linguagem sem malícia é sinal de
estupidez, uma testa sem rugas é sinal de indiferença.
Aquele que ainda ri é porque ainda não
recebeu a terrível notícia.

Que tempos são esses, quando falar sobre flores é quase um crime.
Pois significa silenciar sobre tanta injustiça?
Aquele que cruza tranquilamente a rua
já está então inacessível aos amigos
que se encontram necessitados?

É verdade: eu ainda ganho o bastante para viver.
Mas acreditem: é por acaso. Nado do que eu faço
Dá-me o direito de comer quando eu tenho fome.
Por acaso estou sendo poupado.
(Se a minha sorte me deixa estou perdido!)

Dizem-me: come e bebe! Fica feliz por teres o que tens!
Mas como é que posso comer e beber,
se a comida que eu como, eu tiro de quem tem fome?
se o copo de água que eu bebo, faz falta a
quem tem sede?

Mas apesar disso, eu continuo comendo e bebendo.

(Bertolt Brecht)


Texto publicado no Portal Desacato, de Florianópolis e Blumenews, de Blumenau.