segunda-feira, 1 de abril de 2013

Os inimigos íntimos da democracia




É com este título intrigante que o filósofo búlgaro Tzvetan Todorov nos provoca e convoca à reflexão sobre as ameaças aos Estados democráticos. A democracia, como sabemos, tem como um de seus pilares a liberdade. Não se reduz a uma forma de governo, não se limita a exercer o dever e direito de votar e ser votado nas eleições. Democracia é participar, se envolver, fazer e cobrar justiça social, pois o ser humano só é verdadeiramente livre se tem acesso aos direitos básicos. As instituições democráticas são frágeis, e como cidadãos devemos estar vigilantes aos sinais e riscos de autoritarismo.   

Diante disso, é que se pergunta: quem são os atuais inimigos da democracia? Os estrangeiros? Os terroristas? Um olhar mais apurado nos mostrará que o inimigo é bem mais íntimo... e o livro de Todorov nos possibilita esse outro olhar.

Segundo o autor, os inimigos já não são mais ameaças vindas do exterior, de outros países e seus regimes autoritários. Essas ameaças no momento estão em recuo, ainda que muitos politicólogos e o pontual ataque de 11/09/2001 contra os EUA nos levaram a crer que um novo inimigo externo estava à espreita. O autor defende – e eu corroboro – que as reações espetaculares aos atos terroristas marcaram mais do que os efetivos prejuízos que infligiram. Também questiona qual a proporção entre o ataque às torres gêmeas e as guerras no Afeganistão e do Iraque – que provocaram centenas de milhares de vítimas, abalando a reputação dos EUA na região – e por consequência a sua segurança. Isso sem contar os danos causados ao próprio país e aliados europeus: a aceitação legal da tortura, a discriminação das minorias ou as restrições impostas às liberdades civis.

Já não há mais um inimigo global. O ‘inimigo’ está entre nós, engendrado no nosso meio, na forma de uma deturpação da concepção de liberdade individual – o que faz com que ‘outras exigências, não menos indispensáveis sejam recusadas, reprimidas e eliminadas’. Deve existir uma relação de limitação mútua entre a exigência pelo bem e interesse comum com a exigência de liberdade individual. Essa constatação do autor partiu de um questionamento logo no início da obra: “Num primeiro momento eu tinha acreditado que a liberdade era um dos valores fundamentais da democracia; agora percebo que certo uso da liberdade pode representar perigo para a democracia. Haveria aí um indício de que, hoje, as ameaças que pesam sobre ela não vêm do exterior – da parte daqueles que se apresentam como seus inimigos, mas sobretudo de dentro, de ideologias, movimentos ou gestos que alegam defender os valores democráticos?

Mas vamos ter um cuidado ao analisar o que o autor fala sobre ‘liberdade individual’, pois um julgamento apressado poderia modificar o sentido de suas palavras. Todorov trabalha com a compreensão de liberdade individual na contemporaneidade, alicerçada atualmente no extremo individualismo, em que a reivindicação de liberdade individual exclui a liberdade do outro e se sobrepõe às reivindicações coletivas, próprias da democracia. O individualismo desmedido transforma os cidadãos em tiranos-fascistas, intolerantes aos direitos de outros cidadãos. Portanto, quando Todorov nos fala dessa ‘liberdade individual’, é do descomedimento contemporâneo que ele faz referência. O mesmo pode-se afirmar das pessoas que invocam o direito à ‘liberdade de expressão’, quando apenas pretendem ter o direito de fazer apologia à violência, ao racismo, à xenofobia, enfim, querem ter o direito de causar qualquer tipo de dor ou atingir alguém; ou então invocar a ‘liberdade de crença’ a fim de tentar impor a sua crença e a sua verdade a todos, sem ética e respeito à crença do outro.

Os perigos da ideia de liberdade absoluta, baseada no individualismo, surgem quando um dos elementos da democracia (povo, liberdade e progresso) é isolado ou absolutizado: “o primeiro adversário da democracia é a simplificação que reduz o plural ao único, abrindo assim o caminho para o descomedimento.” Assim, “a relação que se estabelece entre as duas formas de autonomia – soberania do povo e liberdade da pessoa – é a de uma limitação mútua: o indivíduo não pode impor sua vontade à comunidade, e esta não deve interferir nos assuntos privados de seus cidadãos”.

Hoje “a democracia está doente de seu descomedimento: a liberdade torna-se tirania, o povo se transforma em massa manipulável, o desejo de promover o progresso se converte em espírito de cruzada”. Exemplos não faltam em nosso país/ao nosso redor: a ‘liberdade como tirania’ está naqueles que militam contra os direitos humanos na comissão de direitos humanos; a ‘massa manipulável’ está naqueles rebanhos conduzidos por pastores fundamentalistas (e que pregam um conservadorismo não praticado por eles mesmos – a fim de alcançar a massa, com o objetivo de ganhar poder e dinheiro); e um exemplo de ‘progresso como espírito de cruzada’ está na bancada ruralista e até em alguns de nossos políticos locais que estão fazendo pressão para derrubar alguns dispositivos vetados do novo Código Ambiental. Esses ditos ‘inimigos’ têm uma aparência menos assustadora, pois usam os trajes da democracia e por isso podem muitas vezes passar despercebidos. Mas nem por isso são menos perigosos: “se não lhes for oposta nenhuma resistência, um dia eles acabarão por esvaziar esse regime político de sua substância. Conduzirão a um desapossamento dos seres e a uma desumanização de suas vidas.”

O ‘inimigo’ da democracia também está em nós mesmos – e a idéia de que possamos nos assemelhar a quem execramos chega a ser insuportável: “Transtorna-nos pensar que Hitler era um ser humano que compartilhava conosco certos traços. Esse mal é apavorante, e portanto preferimos considerá-lo uma anomalia monstruosa, exterior à nossa história e à nossa natureza. (...) Ao refletir sobre a história intelectual do nazismo, George L. Mosse, um dos mais perspicazes especialistas no assunto, observava que o racismo no qual se baseava essa doutrina compartilhava traços com outras bem mais respeitáveis. O racismo, escreve ele, “não constitui uma aberração do pensamento europeu ou de momentos isolados de loucura, (...) está “associado a todas as virtudes que os tempos modernos não cessaram de elogiar”. Descobrir o inimigo dentro de nós é inquietante, pois se antes nos atínhamos somente aos ‘inimigos externos’ (totalitarismo nazista, p. ex.), agora precisamos nos identificar como ameaças e enfrentá-las.  As chances de superá-las, segundo o autor, não estariam numa guinada radical, pois essas mutações da democracia não são fruto de um complô ou intenção maligna, e aí reside a dificuldade de estancá-las.

Combater os inimigos íntimos é mais difícil do que os inimigos de outros tempos, pois eles invocam o espírito democrático, dando uma aparência de legitimidade. Mas de maneira nenhuma isso pode nos levar a uma resignação ou cinismo; ou à convicção de que tudo está perdido. Mas se não compreendemos a sociedade em que vivemos, estaremos nos arriscando e muito – por isso a importância de levar em consideração os estudos trazidos pelas ciências humanas e sociais.

Diante das falências das concepções de governo, não podemos mais aceitar simplesmente sermos governados, neste eterno retorno de uma servidão voluntária. É preciso tomar parte e agir como cidadãos de fato e não massa manipulável. Precisamos debater política com seriedade e promover o efetivo exercício de um autogoverno.

Considerando os tempos difíceis na luta pelos direitos humanos, a dificuldade de estabelecer a laicidade do estado e o risco de vermos direitos conquistados com muita luta e suor serem extirpados, é que recomendo a leitura desse livro – terminando esta reflexão/diálogo com uma última citação: A história não obedece a leis imutáveis, a Providência não decide quanto ao nosso destino. O futuro depende das vontades humanas.”

* Os Inimigos Íntimos da Democracia, de Tzvetan Todorov (Cia das Letras, 2012)
* Esse texto foi publicado originalmente no Portal Blumenews, de Blumenau, onde a autora é colunista; e no Portal Desacato.info, de Florianópolis.

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