sexta-feira, 1 de março de 2013

"A alma como prisão do corpo"


Na sociedade de controle, o Estado produz e reproduz, numa escala avassaladora, inúmeras normas controladoras de comportamentos. Dentre elas, não há quem não se lembre da proibição de usar pulseiras coloridas “do sexo”; da permanência de malabares nos semáforos; de consumir bebidas alcoólicas em praças públicas e ruas; do uso de narguilé em bares e restaurantes. São tantas as leis proibitivas, que até já foram motivo de publicações irônicas e sarcásticas, como é o caso do livro “É proibido soltar pum às 18 horas e outras leis malucas no mundo inteiro”. (Ferreira, Mauro. ed. Panda Books).

As leis são mecanismos de controle para nos adestrar; e é no adestramento que encontramos a importância dessa discussão. Segundo Foucault, primeiro disciplina-se a alma e depois o corpo. Quando as leis e tudo aquilo que nos normatiza é internalizado, a partir de uma vigilância constante que nos remete a esse comportamento, "a alma, efeito e instrumento de uma anatomia política" torna-se "prisão do corpo".

É certo que a ditadura militar deixou muitas marcas de repressão – principalmente os inúmeros órfãos desejosos de controle e ordens, indivíduos sem autonomia de pensamento, que sequer tentam refletir eticamente sobre suas ações, dependentes de um Estado regulador. E assim reivindicam leis e regras para si e também para exercerem controle sobre o Outro.

A falta de autorreflexão e autonomia faz com que este cidadão peça e até aceite que o Estado estabeleça mais e mais mecanismos de controle, sem se dar conta dos excessos: acha normal proibir tudo, entregando até a sua intimidade ao controle estatal e social, numa espécie de ditadura consentida, adentrando num vicioso ciclo.

Em Blumenau não poderia ser diferente: aqui já é proibido o consumo de bebida alcoólica em praças e ruas, mas não para aqueles que podem gastar muito: pois o stammtisch não pode parar, nem as cervejarias que ficam dentro do Parque Ramiro Ruediger e da Prainha – concessões públicas – e muito menos o esquenta da Oktoberfest na rua XV. Também proibiram os malabares que pediam dinheiro nos semáforos, mas nem pensar em proibir as dezenas de ‘pedágios’ de entidades pedintes nos sábados de manhã. Quer dizer, o Estado agora controla e ordena até a quem podemos doar nosso dinheiro nos semáforos.

Hoje, antes de ser livre, o cidadão tem que estar a serviço do capital e do consumo: e assim assistimos passivamente a elitização de parques, com a permissão para beber só nos seus bares privados; a privatização da faixa de areia da praia (ainda que não normatizada), pois ou alugamos as cadeiras e guarda-sóis estrategicamente deixados por comerciantes antes mesmo do sol nascer, ou não temos mais o direito de estar lá.

Convivemos cotidianamente com leis injustas que promovem a desigualdade e podem ultrapassar até os limites da intimidade: na Alemanha, os proprietários de um condomínio da cidade de Radeburg distribuíram panfleto aos seus inquilinos orientando os homens a não urinarem em pé. Eles alegam que os moradores muitas vezes deixam que o xixi caia para fora do vaso e a acidez da urina estaria danificando os aparelhos de calefação instalados próximo ao vaso sanitário. No ano passado, um partido de oposição sueco também chegou a propor uma lei proibindo os homens de urinar em pé, evitando as gotas de xixi que escapam e vão parar no chão e na borda da privada (espero que ninguém copie essa idéia por aqui).

E assim pouco a pouco, cada um fica no seu quadrado, aprisionado num corpo sorrateiramente adestrado; e quando todas as normas estiverem finalmente internalizadas e naturalizadas, quem cometer o deslize de tomar uma latinha de cerveja no parque da cidade será o “cara a ser corrigido”, penalizado pelo Estado e marginalizado pela sociedade.

Aí eu pergunto: até quando assistiremos impassíveis a todo esse cerco de proibições? Será a liberdade um direito em extinção?

* Publicado originalmente no Portal Blumenews, de Blumenau.


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